O que ler para entender o Brasil – O Brasil Imperial – Aula 3
Texto: IELA
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Narrativas sobre tempos de “nova pacificação”
Por Raquel Moysés – jornalista
23.02.2010 – Em seu livro “Un Teléfono de Urgencias y … Casi Perder la Fé” Gerardo Fernández Juarez, da Universidad de Castilla-La Mancha/Madrid , narra um episódio que ocorreu com ele durante trabalho de campo com povos da Bolívia. O antropólogo conta que certa noite acompanhou uma equipe de saúde para cuidar de um homem em um povoado Kallawaya. O grupo, coordenado por uma dentista-recém saída da universidade e que cumpria o Serviço Social de Saúde Rural Obrigatório – fazia parte do centro de saúde local, recém-inaugurado. A moça substituía o médico titular que se ausentara sem nada ter informado sobre o enfermo, ao qual havia receitado um complexo vitamínico e um antiinflamatório.
O doente parecia ter piorado e, de acordo com sua mulher, uma quéchua, há dez dias o marido estava prostrado, tremendo de febre, com a urina escura e escarrando sangue. Sem condições de transportá-lo para um hospital, a equipe médica ficou desnorteada. A mulher do enfermo, desesperada, parecia desconfiar dos profissionais e não permitia que o companheiro fosse deslocado para outro local. Ela vigiava para que remédios e objetos cerimoniais utilizados nas práticas rituais Kallawayas, colocados sobre a mesa, ao lado do paciente, não fossem tocados nem retirados dali.
Juárez narra em seu livro que, angustiado com a situação, decide telefonar para um amigo, médico em La Paz, mas ele manifesta sua impotência diante da situação. Não havia como prestar socorro a distância. Espantosamente, porém, no dia seguinte ao telefonema, o doente começa a apresentar sintomas de melhora. Sem que a equipe de saúde soubesse, o homem estava sendo tratado por médicos Kallawayas.
Ao recordar a tentativa patética de telefonar para o amigo médico, buscando ajuda a quilômetros de distância, Juárez escreve: “Me senti ridículo y a la vez me di cuenta de mi indómita arrogancia al haberme creído responsable de solución alguna por encima de la capacidad demostrada de los propios Kallawayas” .
Agir no mundo
Parecendo tomados por sentimentos de perplexidade semelhantes aos vividos por Juárez – e carregados de dúvidas e indagações sobre o modo de conviver com os povos originários – estudiosos e pesquisadores de várias partes do Brasil se reuniram durante a Oficina Realidades de Pesquisas em Saúde e Alimentação: Interfaces com a Antropologia. O encontro, que teve lugar em Florianópolis, na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), foi organizado pelo Núcleo de Estudos sobre Saúde e Saberes Indígenas (Nessi/UFSC) e serviu para compartilhar experiências de pesquisas sobre saúde e alimentação em contextos “indígenas” e sua relação com a diversidade cultural e políticas públicas nacionais.
Os temas abordados ilustram a diversidade de práticas e significados simbólicos entre os povos originários, apelidados de “índios” pelos colonizadores. E, como explica a professora Esther Jean Langdon, do Núcleo de Estudos sobre Saúde e Saberes Indígenas, a alimentação e a saúde revelam-se como elementos dinâmicos em processos sócio-políticos complexos, nos quais a cultura é muito mais que um conjunto de “costumes e crenças”.
No transcorrer da oficina, a antropóloga estadunidense, que trabalha na UFSC desde 1983, ressaltou a importância de estimular a discussão entre pessoas que fazem pesquisa na área de saúde e problemas relacionados, por exemplo, ao abuso de álcool, com o propósito de subsidiar programas de educação, prevenção e atenção à saúde. Esther Langdon, que realiza seu trabalho de pesquisadora na América Latina, com destaque para o campo da cosmologia e saúde, fala do valor da pesquisa antropológica nessa área e enfatiza a necessidade de reforçar a visão holística, “pois saúde não pode ser separada da realidade social e política”.
Vários pesquisadores apresentaram trabalhos que se propõem a contribuir para a compreensão de problemas complexos, tendo como horizonte o respeito a culturas e práticas tradicionais. Lembraram que a cultura é um processo dinâmico de construção do conhecimento que emerge das relações sociais como um modelo para agir no mundo, ao mesmo tempo em que é modelada por essa ação. E explicaram que a abordagem antropológica busca descrever e compreender esses processos sócio-políticos e culturais a partir das ações e interpretações dos próprios humanos que fazem parte desses sistemas, destacando a diversidade das realidades etnográficas e os pontos em que essas se conectam, ou deixam de se conectar, com o modo de produção capitalista e políticas de estado, por exemplo.
Crítica da saúde na América Latina
A saúde e a alimentação das populações tradicionais atraem a atenção da antropologia que, nos dias que correm, é mais centrada na práxis, conforme esclarece Esther Langdon. E isso não se restringe ao patamar teórico da pesquisa. “A antropologia procura colaborar na busca pelo fim ou redução das contradições decorrentes do desenvolvimento econômico e da ação do estado por meio do reconhecimento e valorização das práticas e pontos de vista dos agentes sociais, como forma de subsidiar ações e as políticas públicas do estado nacional.”
Na questão da nutrição, exemplifica a cientista, não é cesta básica que vai resolver a questão da subnutrição e da fome, assim como, no que se refere à saúde, devem ser respeitadas as culturas tradicionais, suas práticas e saberes, para que o atendimento e o cuidado sejam humanizados.
Na hora de escolher algum tipo de terapia, por exemplo, estabelecem-se várias relações entre os envolvidos (com familiares, com os profissionais de saúde, com amigos, com o farmacêutico, etc). “E essa relação entre o que cada um entende e o tratamento em si é a procura da práxis. Nesse caminho, as pessoas mudam de idéia, concordam com alternativas que antes não entendiam ou admitiam. “Dizer que as pessoas não enxergam além do que sua cultura estabelece é relativo”, diz a professora, citando o pesquisador argentino Eduardo Menéndez Spina, do Centro de Investigaciones y Estudios Superiores en Antropología Social (Ciesas/ México).
Menéndez é referência no campo da antropologia médica e do pensamento crítico em saúde. Reside no México desde 1976, tendo sido afugentado de seu país pela ditadura, que atacou com bombas o Instituto de Medicina Ocupacional, da Universidad Nacional de la Província de Buenos Aires, onde trabalhava. Seus trabalhos e estudos sobre autoatenção, modelo médico, alcoolismo, políticas em saúde, epidemiologia sócio-cultural, mídia e saúde são marcos na reconstrução da produção crítica da saúde na América Latina.
Menéndez, em seus estudos, faz uma revisão histórica da produção da antropologia médica na América Latina que, na origem, apresenta abordagens fundamentalmente da antropologia norte-americana. O antropólogo analisa criticamente os enfoques usados, em especial o culturalista e o funcionalista. Preconiza a necessidade de se construir uma epidemiologia sintética que inclua o que denomina “epidemiologia popular” e a epidemiologia que surgiu da saúde pública, enfatizando os diferentes fatores que uma epidemiologia sócio-cultural pode apontar para o estabelecimento de uma política de saúde radicalmente preventiva.
Impasse nas relações humanas
“Eduardo Menéndez me inspira bastante”, diz Langdon, em entrevista publicada na Revista de Enfermagem (vol.62 no.2 Brasília Mar./Apr. 2009), ao citar artigo em que o estudioso reflete sobre processos de autoatenção dos membros de uma comunidade, definindo-os como as práticas que os grupos sociais atribuem a seus padecimentos, problemas e sentimentos sem a intervenção direta de um especialista. O pesquisador fala da necessidade de os serviços primários de saúde se articularem com essas práticas.
Na mesma entrevista, a antropóloga estadunidense comenta que “um grande problema em aceitar os sistemas médicos de outras culturas é devido ao preconceito implícito do profissional para quem somente um sistema, o nosso, é universal e verdadeiro, e os outros são inválidos.” Porém, o motivo da não-adesão, constata Langdon, “é em razão do fato de que as pessoas tomam conta de suas vidas, e, sua aquiescência às indicações sobre medicamentos ou outros cuidados recomendadas pelo profissional, dependerá do entendimento desses sujeitos. Então, dessa forma, existe um impasse na relação entre o profissional e seu paciente cuja solução não é clara, mas que deve ser procurada no estabelecimento de uma relação dialógica e não hierárquica com o paciente.”
Já na oficina realizada na UFSC a antropóloga lembra, ainda citando o investigador do Ciesas, que a interação humana no tocante ao cuidado com a saúde envolve dois tipos de práticas: uma cultural, relacionada a atividades e valores que acompanham e mantêm o grupo social; e outra, de sentido lato, que abrange representações e métodos que a população utiliza para entender, tratar, prevenir e curar processos que afetam sua saúde.
Por isso, a noção de saúde em antropologia vai muito além do sentido restrito das escolas de medicina e outras áreas da saúde, centradas no modelo biológico. Ao estudar nutrição, exemplifica a professora, não se pode pensar só nos elementos nutritivos, mas nos outros aspectos da realidade humana que afetam a alimentação.
Corpos ‘mestiços’
Laura Perez Gil, do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal do Paraná e também do grupo do Nessi/UFSC, trabalha com pesquisas que envolvem a construção social das pessoas, enfocando a questão da corporalidade. No relato que fez durante a oficina explicou que a atuação sobre o corpo depende de uma série de valores, mecanismos e ações rituais. Ela estudou a doença e a cura no xamanismo praticado pelos Yawanawa, grupo da família lingüística pano que vive na Terra Indígena Rio Gregório, no Estado do Acre, Brasil.
Nos seus estudos, o xamanismo é abordado na sua cosmologia e em práticas diversas, entre as quais se destacam a utilização de remédios vegetais e as cerimônias em que se toma ayahuasca (bebida sacramental produzida a partir do cozimento de duas plantas nativas da floresta amazônica) e se entoa rezas ou cantos para provocar uma doença ou para curá-la. Ela explica que a primeira dessas técnicas está principalmente associada às doenças originadas pela quebra de tabus e resguardos. A segunda se insere num complexo triádico fundamental do xamanismo Yawanawa, formado pelo mito, a reza e o sonho.
O xamanismo é termo genericamente usado para definir práticas etnomédicas, mágicas, religiosas, envolvendo cura, transe, metamorfose e contato direto entre corpos e espíritos de outros xamãs, de seres míticos, de animais, dos mortos, etc. No seu trabalho, Laura Gil destaca a necessidade de se aprofundar nos conceitos êmicos de pessoa e corpo para entender processos de doença, cura e a forma em que é concebido o poder xamânico para aqueles que o praticam.
O padrão êmico se propõe a analisar o fato antropológico, seja étnico, grupal, individual ou fenomenológico, a partir da visão de quem promove ou experimenta determinadas situações e fatos, isto é, as pessoas que vivenciam determinada cultura. Ele se diferencia do padrão ético de estudo cultural, que se baseia na abordagem de um fato antropológico a partir de um valor cultural pré-definido pelo observador, e, portanto, submetido ao crivo de sua própria interpretação cultural.
Laura Gil explica que os dados levantados entre os Yawanawa mostram a importância de abordar as práticas e conhecimentos xamânicos como um conjunto dinâmico cujos elementos são combinados de forma diferente em razão de diversos fatores, mais do que enquadrados em tipologias rígidas e ahistóricas.
Na pesquisa, ela investigou aspectos ligados à alimentação e relacionados à iniciação xamânica, que envolve o controle sobre o que entra e sai no corpo que está em transformação. Laura explica que na iniciação xamânica Yawanawa há um conjunto de normas de conteúdo moral relacionados aos hábitos alimentares. Tais preceitos estão baseados em princípios que indicam, por exemplo, animais comestíveis, ou não; os que são considerados sujos ou limpos; os que têm poder xamânico.
A professora da UFPR destaca ainda que os Yawanawa vivem em contato com um contexto não indígena que já produz impacto no seu modo de viver, inclusive na alimentação. “Eles se sentem atraídos por aspectos relacionados à cultura ‘branca’, mas, ao mesmo tempo, fazem uma crítica moral aos ‘não índios’, que exploram e às vezes são mesquinhos. Percebe-se, portanto, uma ambigüidade em criticar e ao mesmo tempo querer se tornar mestiço.”
E isso se evidencia na mudança alimentar, no nutrir-se de animais que antes não comiam, no consumo de álcool e açúcar, o que contribui também para sua decadência corporal. Laura observou que há coisas que alguns assimilam com entusiasmo, como, por exemplo, bebidas fermentadas que antes não consumiam. “São processos que estão transformando seus corpos em corpos ‘mestiços’, que permitem a eles se relacionarem com o mundo dos brancos e adquirirem certos objetos que ambicionam.”
Nova ‘pacificação’
Myriam Álvares, professora da PUC (MG), trouxe para a oficina um relato de sua vivência com os Maxakalí, do vale do Mucuri, em Minas Gerais. Geralmente apresentados como desorganizados e violentos, os grupos Maxakalí são tratados oficialmente como “problemáticos”, devido aos índices de violência interna, consumo elevado de álcool, alto índice de mortalidade infantil e déficit alimentar.
Essa visão de que se trata de um grupo “primitivo”, até “selvagem”, alimentou a tendência, como conta Myriam, de que, quem se aproxima do grupo, para pesquisar e estabelecer políticas oficiais, acaba querendo “civilizar” os Maxakalí. Hoje, na área em que vivem cerca de mil pessoas, há dois postos da Fundação Nacional do Índio (Funai) e dois centros de saúde da Fundação Nacional de Saúde (Funasa).
Essa política civilizatória arrogante gera, entre outras reações, hostilização em relação a profissionais da área de saúde, tendo ocorrido confrontos na região. Myriam Álvares, que é autora da dissertação “Yãmiy, Os Espíritos Do Canto. A construção da pessoa na sociedade Maxakali”, relata que a tentativa de “pacificação” dessa nação indígena de Minas Gerais, em tempos recentes, foi estimulada, entre outras ações, através de um programa alimentar para crianças de zero a seis anos. A proposta era de manter as mães e os filhos nessa faixa etária diariamente dentro dos postos, em regime de internação, com três refeições diárias (agora reduzidas a uma ao dia).
Quando se levou as mães para dentro do posto, no entanto, a desestruturação da família foi uma consequência imediata, pois as crianças maiores de seis anos ficavam em casa, sem os cuidados das mulheres. Myriam narra que o desconhecimento da cultura desse povo acabou levando o programa a uma situação imprevista.
Como entre os Maxakalí o alimento é para ser compartilhado – entre eles as pessoas se transformam em parentes através do ato de comer juntas – não fazia sentido a regra de apenas o indívíduo-aluno e suas mães terem o direito a se alimentar. Por isso, no início do programa, aparecia todo mundo para comer (pai, avó, tio, sobrinho,etc) e as crianças traziam vasilhas para levar o alimento para casa. A distribuição de sopa em panelões também ocasionou situações complicadas, pois a vida da aldeia passou a girar em torno do programa de distribuição de comida.
Outra situação que acaba gerando conflitos na área é o uso de veículos oficiais para transportar doentes, pois as aldeias ficam longe de onde está instalado o posto de saúde. Conforme relata Myriam, há vários carros rodando o dia todo pela área, e eles acabam sendo utilizados para tudo, às vezes faltando lugar para as crianças e os enfermos. Isso representa outro foco de tensão, pois a demanda por meios de transporte acaba sendo reivindicação permanente.
Depois de 300 anos de ‘contato’ e hostilização com os brancos, Myriam observa que, na atualidade, ocorre novo processo de tentativa de “domesticação” através da troca de alimentos e transporte por contato e conhecimento. Os vários grupos Maxakalí ocupavam uma área compreendida entre os rios Pardo e o Doce, correspondente ao sudeste da Bahia, nordeste de Minas Gerais e norte do Espírito Santo. Os remanescentes agora vivem em duas áreas indígenas – Água Boa e Pradinho – hoje unificadas na Terra Indígena Maxakalí, no município de Bertópolis, cabeceiras do rio Umburanas, vale do Mucuri, no nordeste de Minas Gerais.
Álcool e violência
Maximiliano Loiola Ponte de Souza, da Fiocruz do Amazonas, vem atuando em pesquisas sobre uso de álcool entre os povos da região do Alto Rio Negro. Na oficina, o pesquisador apresentou dados e reflexões sobre seus estudos de mestrado de doutorado, na área de psiquiatria, falando de problemas relacionados a estratégias de prevenção tidas como efetivas para áreas urbanas, mas inadequadas para tratar com os povos da floresta.
O médico psiquiatra explica que há várias dificuldades para se limitar o consumo de álcool nas comunidades do Alto Rio Negro. Uma delas se deve ao fato de que, no interior das terras ‘indígenas’, há grande produção de caxiri, bebida tradicional, que é fruto do trabalho da mulher e mostra o cuidado que ela tem com sua roça de mandioca.
Em Iauarete, localidade situada na fronteira do Brasil com a Colômbia, as festas representam momentos de livre acesso ao caxiri, pois sua oferta em grande quantidade mostra o labor feminino, traz prestígio para lideranças, reforça laços de solidariedade e contribui para reduzir conflitos. Impedir o uso de álcool em tais celebrações, argumenta o médico, seria uma medida que viria a ferir princípios de autonomia e independência de povos, como os Tukano e Maku, que vivem nessa região. Maximiliano lembra que nessas áreas “nem se pode estabelecer o consumo por idade mínima, pois para o indígena a idade cronobiológica não é levada em conta, já que os rituais de passagem da infância para a vida adulta estão em desuso em diversos lugares.”
O médico menciona vários princípios que deveriam pautar estratégias de promoção à saúde, já identificados por estudiosos como a antropóloga Esther Langdon. Um deles é evitar utilizar a categoria “alcoolismo”, associada a uma doença individual e, portanto, não apropriada para determinados ambientes sócio-culturais. Apreender o contexto no qual se faz o uso de bebidas alcoólicas é outro princípio que permitiria compreender quando beber se torna um problema e identificar, em cenários específicos, como as condições de vida contemporânea influenciam no modo de consumo dos grupos indígenas.
O terceiro princípio é o de procurar envolver a comunidade no tratamento da questão, destacando a valorização do conhecimento popular e da participação social na tentativa de pactuar estratégias de intervenção que respeitem a cultura dos povos. A idéia é de valorizar o conhecimento nativo e a capacidade dos grupos sociais para que possam traçar seus próprios caminhos de promoção à saúde. Outro princípio define que, para lidar com problemas do uso de álcool, as ações não devem focar apenas as consequências relacionadas ao abuso no consumo das bebidas alcoólicas, mas tratar de entender e atuar sobre fatores que levam a isso.
Maximiliano considera que conviver com uma população culturalmente diferenciada é um desafio que coloca em xeque um conjunto de saberes acumulados. Pensa ser necessário questionar a adaptabilidade cultural, ética e sanitária de determinadas estratégias de intervenção, a partir do diálogo com aqueles com quem se pretende agir. Mas, antes de tudo, é preciso que sejam reconhecidos como sujeitos autônomos e aptos a construir saídas para os numerosos problemas que os afligem.
Inovações do ‘contato’Maximiliano Loiola esclarece que a relação dos povos estudados com as bebidas alcoólicas vem sendo redefinida diante das inovações do ‘contato’ com a sociedade nacional, ao longo dos últimos três séculos. A partir dos dados que reuniu e analisou, ele notou que houve alterações importantes nas bebidas consumidas, tanto pelas mudanças na forma de preparação do caxiri, como pela introdução de outras substâncias contendo álcool, como a cachaça, por exemplo.
Ele observou também que em comunidades do Alto Rio Negro houve um incremento das situações consideradas adequadas para beber, uma vez que novas ocasiões de consumo foram incorporadas às previamente existentes. A limitação do consumo permanece baseada na disponibilidade da bebida. “Bebe-se até acabar, independentemente do que se beba, a cada vez que se bebe. Tal forma de consumo, associando-se ao uso mais frequente de bebidas, de maior teor alcoólico, permite compreender a busca frenética por qualquer bebida que contenha álcool na comunidade, quando termina o caxiri e/ou a cachaça”, descreve em sua dissertação de mestrado “Alcoolização e violência no Alto Rio Negro”.
O médico esclarece que a cachaça, nesse contexto, passa a ser um símbolo de status, pois é um artigo caro e em geral restrito a poucos. Nessas circunstâncias, mecanismos tradicionais de reciprocidade são ativados, fazendo com que aquele que compra essa bebida seja forçado a redistribuí-la ao grupo, para manter seu prestígio, através da generosidade, e também para não se tornar alvo de críticas do grupo pela mesquinhez, o que pode se expressar por acusações e até se manifestar através de violência física, sobretudo nos momentos de embriaguez coletiva ou durante rituais xamânicos.
Coação para o trabalho
Maximiliano relata ainda a utilização de novas estratégias diante de mudanças trazidas pelo contato interétnico, como, por exemplo, a progressiva alcoolização do trabalho. A partir da influência dos missionários salesianos, que chegaram à região em 1929, houve um incremento das situações em que havia necessidade de mobilização para o trabalho comunal (roças coletivas, reparos na escola, etc), associado a uma progressiva fragmentação da autoridade das chefias.
Desta forma, agregou-se aos mecanismos anteriores de convencimento para o trabalho coletivo, a oferta sistemática de bebida como estratégia de recrutamento de mão de obra. “Tal mecanismo, que foi ativamente utilizado pelo colonizador na coação para o trabalho escravo, vem possibilitando a persuasão para o trabalho na atualidade.”
Assim, “o processo de alcoolização em andamento na região deve ser visto como resultado de um conjunto de estratégias novas e antigas, que vêm permitindo dar sentido e enfrentar as situações que se apresentam na contemporaneidade destes povos”.
No contexto rionegrino, a passagem da infância para vida adulta dava-se pelos rituais de iniciação, que foram suprimidos progressivamente a partir da influência missionária. À época em que estes ocorriam, passava-se da infância para vida adulta por volta dos 12 ou 13 anos. Durante o período do ritual os jovens aprendiam as normas de grupo de forma intensiva, pela utilização de estados alterados de consciência (privação de sono, jejum, uso de bebidas contendo álcool e outras substâncias psicoativas) e a coerção dos mais velhos (pelo espancamento ritual). Tendo passado pelo ritual, o jovem poderia morar em um local separado na maloca e se casar.
Proibição e tutela
Com tantas mudanças no modo de vida tradicional das nações do Alto Rio Negro, embora a questão da proibição total de bebidas alcoólicas nas comunidades seja considerada uma alternativa, lideranças rio-negrinas se mostram reticentes em relação à medida. Reconhecem que não é possível coibir completamente a entrada do álcool e associam a proibição da circulação de bebidas alcoólicas com a noção do índio tutelado e irresponsável.
Atualmente existe um verdadeiro “tráfico”, que possibilita a entrada de bebidas como “contrabando”. Esta bebida proibida parece também alimentar um rendoso comércio, em que, com uma garrafa de cachaça vendida na aldeia, paga-se uma caixa comprada na cidade. “O alto preço embora pareça, em parte, coibir o consumo, tem o seu revés que é tornar a cachaça um objeto de status e um símbolo de prestígio”, explica o médico.
A partir das análises que fez, Maximiliano aponta para o fato de se estar diante de um fenômeno coletivo. Por isso, as possíveis políticas públicas pensadas para a região devem igualmente ter um caráter coletivo. Ele sugere que se valorize a cultura e a identidade de cada grupo para que sejam construídas as negociações simbólicas e traçadas as estratégias políticas para minimizar os efeitos nocivos do uso do álcool entre os grupos investigados.“Acima de tudo propõe-se que estes caminhos devam ser traçados em parceria com as comunidades, desmontando a noção que somos nós que podemos trazer soluções para os seus problemas.”
Maximiliano afirma ainda que a construção de estratégias criativas para a resolução de problemas, não é uma novidade para os povos do Alto Rio Negro. E, adverte: “Eles ousam construir e direcionar o seu próprio rumo, mesmo quando muitos tentaram determinar o curso de sua história.”
Remédios ‘do mato’
Eliana Diehl, do Departamento de Ciências Farmacêuticas da UFSC, apresentou na oficina resultados de suas pesquisas sobre o acesso, o uso e os entendimentos que os índios Kaingang, da Terra Indígena Xapecó, Santa Catarina, têm a respeito dos medicamentos. Para o desenvolvimento da pesquisa ela utilizou a perspectiva da antropologia médica, em especial da antropologia farmacêutica, que é uma abordagem voltada para o estudo de medicamentos em contextos locais, analisando essa tecnologia como um fenômeno cultural e social e não somente como pertencente aos domínios da farmacologia e bioquímica.
Através de métodos antropológicos e epidemiológicos, Eliana Diehl levantou dados sobre os diferentes setores que fazem parte dos sistemas de saúde entre os Kaingang. Além disso, procurou examinar o tema à luz da política de assistência à saúde para os povos indígenas, baseada no modelo diferenciado de atenção e nos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI).
A pesquisadora comenta que a precariedade em que vive a maioria da população da aldeia sede caracteriza-se por moradias inadequadas, pela falta de sistema de esgoto e de abastecimento de água, bem como de um tratamento adequado ao lixo. Nos levantamentos que fez verificou que as doenças infecto-parasitárias nas crianças de 0 a 14 anos foram o principal motivo de consulta na “Enfermaria” da aldeia Sede.
A análise das prescrições médicas, da dispensação sem receita pelos atendentes/auxiliares de enfermagem e da “farmácia caseira” (medicamentos industrializados encontrados nos domicílios Kaingang) revelou que alguns remédios se sobressaem, entre eles os antibacterianos, os analgésicos não opióides, os antiparasitários, os ansiolíticos e os anticonvulsivantes.
Apesar do expressivo uso desses produtos (em 70,5% dos domicílios Kaingang havia medicamentos de farmácia), a procura pelos “remédios do mato” ainda é intensa, pois é um recurso percebido pela comunidade como mais adequado para algumas doenças, além de representar uma alternativa à falta de medicamentos industrializados . É por isso que os “especialistas nativos” ainda desempenham um papel fundamental na busca por tratamento da saúde.
Eliana verificou que a pluralidade de opções terapêuticas disponíveis aos Kaingang permite a busca de diferentes recursos de cuidado. A procura por eles é influenciada pela maneira como os sistemas e setores de saúde estão organizados e interagindo, bem como pelos conhecimentos, crenças, valores e práticas específicos a esse grupo. A professora comenta que os medicamentos são possivelmente a tecnologia biomédica mais difundida no mundo, sendo demandados e utilizados pelas mais diversas populações. E os dados de sua pesquisa confirmam que não há uma medicina essencial, independente da história de interação entre diferentes culturas. Por isso, como diz, “pensar a questão dos medicamentos no modelo diferenciado de atenção à saúde indígena permanece um desafio a ser superado.”
Manuais preconceituosos
Maurício Soares Leite, pesquisador na área de nutrição e antropologia da saúde, professor da UFSC, falou na oficina de paradoxos e intervenções relacionados a políticas públicas e alimentação entre os povos indígenas. Ele critica a visão etnocêntrica que aparece de modo claro em documentos oficiais da política nacional de saúde. Menciona guias alimentares que pretendem atingir e orientar a população, mas propõem, de modo impositivo e arbitrário, uma nutrição “saudável” e “adequada”, sem levar em conta as diferenças culturais de um país pluriétnico como o Brasil.
O pesquisador encontrou em alguns desses documentos frases que interpreta como “perigosas”. São expressões que explicitam a arrogância do espírito colonizador que transparece em dias atuais. Uma dessas frases, fala por si mesma: “Crenças e tabus não se desfazem facilmente, por estarem arraigados na cultura.”
Vários desses manuais exprimem a visão preconceituosa de que caberia aos brancos orientar os povos “indígenas”, que, dentro dessa perspectiva colonizadora, desconhecem os alimentos “adequados”, não sabem cozinhar nem dar comida “corretamente” às suas crianças.
Maurício traz um exemplo para ilustrar a percepção que os “índios” têm a respeito de profissionais que seguem esses manuais à risca, sem manifestar dúvida quanto ao seu conteúdo nem fazer qualquer crítica ao que prescrevem, muito menos ao modo desrespeitoso como se referem às comunidades tradicionais.
Ele conta que um Guarani, depois de um tempo de convivência com um agente de saúde que parecia desconhecer completamente a visão dos nativos sobre sua própria realidade, disse para o homem: – Quando você chegou aqui (na aldeia) você era muito burro!
Assim como esse relato, as narrativas de vários pesquisadores durante a oficina na UFSC só confirmam a atualidade das observações de Menéndez sobre concepções de interculturalidade dominantes na história deste conceito, e mencionadas na coletânea organizada por Juárez, já citada no início deste texto. O pensador argentino afirma ser necessário “desarrollar reflexiones y propuestas metodológicas respecto del sujeto de estudio y de la metodología a desarrollar para su estudio en términos de relaciones sociales, económicas y culturales.”
Menéndez avisa: “Sin embargo esto casi no se da entre nosotros [antropólogos latino-americanos], ya que aplicamos los instrumentos y metodología desarrollados por las antropologías de los países centrales a partir de la situacionalidad de las mismas. De tal manera que no se género una reflexión y modificación respecto de una relación que incluye aspectos decisivos en términos interculturales ” .
Texto: Gilberto Felisberto Vasconcellos
Texto: Manuel Salgado Tamayo
Texto: Ernesto Villanueva
Texto: IELA
Texto: Elaine Tavares