Início|Brasil|Jacob Gorender: um retrato singular

Jacob Gorender: um retrato singular

-

Por IELA em 13 de dezembro de 2023

Jacob Gorender: um retrato singular
Entrevista realizada por Daniel Carvalho de Oliveira, Jaime Hillesheim e Pablo Ramon Diogo,  com a filha de Jacob Gorender, Ethel Fernandes Gorender.
Participantes: 
DCO (Daniel Carvalho de Oliveira): Professor Colaborador DSS/UEPG; já teve experiência como assistente social na Prefeitura Municipal de Ubatuba-SP, no Creas – Laguna SC e no São Roque SP. Foi coordenador de Casa de Passagem para pessoas em situação de rua, em Ubatuba-SP. Membro do projeto de extensão: Fazer profissional do Assistente Social-DSS/UFSC, e membro do Coletivo Veias Abertas-IELA. Atualmente é pesquisador no Núcleo de Estudos e Pesquisa: Trabalho, Questão Social e América Latina – NEPTQSAL.
EFG (Ethel Fernandes Gorender): Filha de Idealina Fernandes e Jacob Gorender. Possui mestrado em Oncologia pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Atualmente é médica oncologista pediatra da Casa de Saúde Santa Marcelina, pediatra do Hospital Geral de Vila Nova Cachoeirinha, e professora de Cancerologia Clínica na Faculdade Santa Marcelina.
JH (Jaime Hillesheim): Possui graduação em Serviço Social pela Universidade Regional de Blumenau – FURB (1992) e é especialista em Serviço Social do Trabalho pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC (1994). É graduado em Direito pela Universidade de Cuiabá (2007). Especialista em Direito Constitucional pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul/RS e Fundação Escola Superior do Ministério Público do Estado de Mato Grosso/MT. Especialista em Direito Individual, Coletivo e Processual do Trabalho pela Escola da Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 23ª Região. É mestre em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP (1996). É Doutor em Serviço Social pelo Programa de Pós-Graduação em Serviço Social – PPGSS da UFSC. Realizou estágio pós-Doutoral junto ao Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS – 2017-2018). É professor dos cursos de graduação e pós-graduação do Departamento de Serviço Social da UFSC. É membro pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisas: Trabalho, Questão Social e América Latina, vinculado ao PPGSS/UFSC. Tem experiência na área de Serviço Social, com ênfase em Serviço Social e Trabalho, pesquisando sobre os seguintes temas: trabalho, serviço social e trabalho, serviço social e mercado de trabalho profissional, serviço social e direito, direito do trabalho.
PRD (Pablo Ramon Diogo): Graduado em Serviço Social pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC e integrante do Núcleo de Estudo e Pesquisa: Trabalho e Questão Social na América Latina – NEPTQSAL. Realizou o Projeto de Pesquisa, enquanto bolsista PIBIC/CNPq, ‘Formação e Desenvolvimento da Sociedade Brasileira: as origens do mercado de trabalho assalariado’ (2021-2022), como também participou como bolsista no Projeto de Pesquisa ‘A Ideologia da Modernização Trabalhista no Brasil’ nos ciclos 2019-2020 e 2020-2021. Atualmente é pesquisador bolsista da CAPES, vinculado ao Núcleo de Estudo e Pesquisa: Trabalho e Questão Social e América Latina – NEPTQSAL e ao Programa de Pós-graduação em Serviço Social – PPGSS – da UFSC.
Introdução
A entrevista que se segue tem carácter mais biográfico, trazendo à luz aspectos  da vida cotidiana do jornalista, historiador e militante político, Jacob Gorender. Não há, portanto, aqui, nenhum objetivo essencialmente acadêmico, ainda que a trajetória de vida deste intelectual tenha sido marcada por importantes contribuições para se pensar o Brasil. Por isso, em alguns momentos da presente  entrevista realizada com Ethel Fernandes Gorender, filha do casal Jacob Gorender e Idealiana Fernandes, questões relacionadas à perspectiva teórica de Jacob Gorender ganham evidência. . O propósito do diálogo com Ethel Fernandes Gorender foi  resgatar e revitalizar em memória a vida de Jacob Gorender,  este particular interprete brasileiro. A entrevista foi realizada de maneira virtual, donde na transcrição se procurou preservar minimamente a fluidez da conversação que se teve, mas sem desprezar a necessidade de pequenos ajustes com vistas a melhorar a própria exposição, observando as normas da língua culta. É o problema fatídico do vernáculo lusófono brasileiro, do qual  Mário de Andrade já alertava em Macunaíma, destacando a diferença do “brasileiro falado e o português escrito” (Andrade, 1975, p. 111). Eis a razão de preservar-se as reticências que indicam interrupções de pensamento e fala, trazendo “a quente” o diálogo ocorrido, como também poucos cacoetes linguísticos, desde  que não afetassem   a fluidez da leitura.
O Núcleo de Estudos e Pesquisa: Trabalho, Questão Social e América Latina (NEPTQSAL), do qual os entrevistadores são integrantes e pesquisadores, agradece o acolhimento recebido e tempo cedido por Ethel Fernandes Gorender, sem a qual seria impossível o rico resgate das informações.
JH – A primeira questão que nós gostaríamos que você falasse, fazendo  uma demarcação em suas memórias, diz respeito ao cotidiano do seu pai, Jacob Gorender. Essa  dimensão certamente é  pouco conhecida  pelos leitores dos escritos de Gorender. As pessoas o conhecem  como um intelectual, militante político, mas têm poucas informações sobre suas relações, seus gostos seu jeito de ser cotidiano. Em síntese, gostaríamos que nos dissesse quem era, mais intimamente,  Jacob Gorender?.
EFG – Tá, ok. Eu vou falar misturando um pouquinho o que eu vivi com ele. Meu pai era uma pessoa, de certo modo, bastante introspectiva eu diria, mais para um cara sério, diferente até um pouco dos irmãos dele. Acho que isso era desde cedo, acho que ele trouxe isso, era próprio dele. Tinha dois irmãos bem mais expansivos, vamos dizer assim, em termos de características dos cinco irmãos. E eu dividiria meu convívio com ele em duas partes. Uma na infância, que foi praticamente ausente. Então se eu pegar do zero aos dez anos foi uma coisa totalmente irregular. A fase boa dele morar no Leblon antes do golpe eu não peguei, que eu era muito pequena, então não usufrui. Depois a fase toda da clandestinidade até ele ser preso, foi pulando de galho em galho, vivendo aqui e ali, então meu contato com ele acaba sendo, em termos de gravar memória, muito pequena – de realmente não ter essa memória de convívio quase diário, muito pouco. Teve um pouquinho antes de ele ser preso na clandestinidade. A gente morava aqui em São Paulo, por sinal morava na mesma rua que eu moro atualmente. Coincidências da vida. Eu tenho alguns flashs dessa época. Talvez o flash maior foi quando o homem pisou na lua, que a gente assistiu na televisão de um vizinho, porque a gente não tinha televisão naquela época. Mas eu lembro mais, assim, de uma época muito tensa. Depois veio a prisão dele, eu tinha oito anos na época, e aí eu fiquei dois anos no Rio de Janeiro com meus tios. E eu vim a vê-lo, visitá-lo no presídio. Então a minha mãe me buscava, a cada uma vez por mês, sei lá, a cada quinze dias, e eu ia visitá-lo. Então até os dez anos era uma figura que não foi incorporado cotidianamente, vamos dizer assim, no meu convívio. E a partir dos dez anos, a partir de 1972, quando ele é solto e decidiu ficar em São Paulo, morando em São Paulo, aí eu volto para São Paulo e daí sim a gente passa a ter um convívio regular. E eu acho que o convívio maior e mais importante se deu a partir de minha adolescência mesmo, a partir dos quinze, dezesseis anos. Aí eu começo a compreender melhor e ele também a me compreender melhor, porque também a relação dele com criança, vamos dizer assim, era não próxima. Ele tinha cuidado, carinho e tudo, mas não era uma relação próxima. E a partir da adolescência que aí a gente pode dividir tudo que acontece no mundo… literatura, cinema. Ao mesmo tempo a gente começa a melhorar a situação financeira, porque quando ele saiu da cadeia e a gente vem para São Paulo, a situação era bem complicada. Era uma situação mais tensa até pela situação financeira propriamente dita. E a partir de 1976, 1977, eu já estou no colegial e ele já está mais estabilizado. Eu acho que aí a gente começa a ter uma vida tranquila e fluindo bem. Aí foram os anos bons, que ele estava com saúde, minha mãe estava com saúde, ele trabalhando. Aí a gente começa a ter um convívio bacana. De todo esse convívio o que eu pego muito foi sempre o estímulo para que eu estudasse, sempre. Isso é fundamental. E uma riqueza cultural muito grande. Isso desde pequena. Eu cresci no meio de livros, então sempre com muito livro, muita coisa. E assim, não só de livro, mas música, de ouvir. Ele gostava muito de música clássica, mas também ouvia música popular brasileira, ouvia jazz, minha mãe gostava muito também. Cinema, shows, peças. Então foi uma coisa muito rica. E de outras coisas também. Os dois gostavam muito de assistir luta de boxe, o Cassius Clay. Ele gostava muito do Cassius Clay, Muhammad Ali. Futebol, esse tipo de coisa. Olimpíadas a gente assistia, tudo. Então essa parte foi muito rica para mim, foi muito intensa. E aí depois a gente teve um convívio normal, mas assim, essa riqueza acho que veio principalmente na adolescência. Acho que foi a grande importância para minha formação propriamente dita. Mas ele, num geral, era sempre alguém mais introspectivo, alguém um pouco mais fechado. Tinha bons momentos e outros mais um pouco – às vezes – depressivo. Isso fazia parte, mas eu acho que fazia parte da persona dele. Isso eu acho que já veio desde sempre.
JH –  Você fez menção à família de Jacob Gorender. Gostaríamos, nesta direção,  que você nos falasse um pouco em relação a isso. Como era a família dele, a relação dele com os irmãos, enfim. Em alguma medida as escolhas que ele fez, do ponto de vista político, inclusive, interferiram  nessas relações e no convívio familiar?. 
EFG – Ele era filho de judeus russos, não sei se ucranianos, na época do império russo. Meu avô era de Odessa, era um comerciante de rua de produto, de frutas, essas coisas. Pelo que eu desprendi da história toda ele era socialista, participava de um partido operário judeu lá, se chamava BUND (União Judaica Trabalhista da Lituânia, Polônia e Rússia). Depois ele veio por causa dos problemas do império russo naquela época, em 1905 parece. Veio primeiro para Buenos Aires, parece que com um irmão e depois se perdeu desse irmão. Depois eu não sei porquê cargas d’água ele foi parar em Salvador, que tinha acho que vinte judeus, vinte famílias judaicas, alguma coisa assim. Era um núcleo muito pequeno e que acabaram se estabelecendo lá. Lá ele casou uma vez, parece que a mulher morreu e depois ele casou com a minha avó. Esse meu avô eu não conheci. Ele estava vivo quando eu nasci, mas eu não cheguei a conhecer. Minha avó eu conheci. Algumas vezes que eu ia, ela ficava num asilo judaico lá no Rio de Janeiro, às vezes meus tios me levavam para vê-la, mas muito pouco, muito pouco contato. Eles eram muito pobres em Salvador, meu avô acho que vendia pão, alguma coisa no comércio lá, naquela parte mais pobre de Salvador. Moravam num cortiço e tiveram cinco filhos, o meu pai era o mais velho. Todos estudaram. Nisso eu acho que o meu avô já tinha essa formação de estudo, pelo que depreendi ele também era autodidata, de aprender a ler e tudo o mais, estudava. Não era religioso. Pelo que eu entendi também era antissionista. E todos estudaram. Parece que foram lá para o ginásio da Bahia, que era a grande escola que tinha lá. Assim eles se formaram. Depois, quando meu pai entrou em Partido Comunista e veio para São Paulo, para o Rio de Janeiro, depois da Guerra, eu não tenho direito essa época do convívio dele com a família. Mas deve ter sido bem menos. Porque o que eu pego da minha época o convívio foi muito pouco, principalmente com a mãe dele. Porque ele estava clandestino o tempo inteiro, depois saiu da prisão e vai morar em São Paulo. A gente ia no Rio de Janeiro uma ou duas vezes ao ano, quando muito. Com os meus tios não, já eram mais presentes. Meus tios tinham dois que eu acho que participaram de Partido Comunista. Meu tio chegou… Acho que dois deles chegaram a serem presos na Bahia, em Salvador, depois do golpe. Aí eu tinha um convívio maior. Um era jornalista lá em Salvador, dois engenheiros e um era publicitário – este eu lembro que estava melhor de vida, era o Simão, que era o mais próximo. Que era o que segurou muito a peteca enquanto meu pai estava preso, principalmente da parte financeira. Foi quem coordenou principalmente essa parte. Era uma pessoa muito próxima, muito bacana.
PRD – Gostaríamos  que você  nos contasse um pouco sobre essa trajetória intelectual de seu pai. Como ele, enquanto um estudante de Direito da Universidade Federal da Bahia, foi influenciado pelo marxismo? Como essa influência foi determinando as escolhas de seu pai após ele abandonar esse curso de Direito? Esse abandono  já era resultado dessa influência do marxismo ou não?
EFG – Não. Eu acho que ele começou a ter contato com o Partido Comunista em Salvador quando ele começou a trabalhar num jornal para poder se manter quando começou a Faculdade de Direito. Como eu falei, eles eram muito pobres e parece que tinha que pagar uma taxa, alguma coisa lá na Universidade. Ele começou a trabalhar inicialmente como arquivista e depois foi subindo lá dentro do jornal. E aí tinham outros comunistas. Pelo que eu entendi, daquela época, teve alguma repressão grande no Rio de Janeiro e em outros lugares, e em Salvador não. O Partido Comunista conseguiu uma certa tranquilidade lá e se estabeleceu lá. E aí que ele foi, vamos dizer, chamado, e entrou junto com Mário Alves, que fazia Faculdade de Direito com ele também. Então foi quando eles começaram a participar mais. Quando ele vai para a guerra ele já se enfronha mais nisso. Lá na Itália ele tem contato com alguns comunistas italianos e tal. Quando ele volta, ele chega a voltar para Salvador, mas aí ele já está enfronhado no Partido Comunista. E aí ele já larga e vai militar. Eu não sei se da Faculdade de Direito tinha alguma influência nele, mas eu acho que isso veio muito do meio aonde ele trabalhava e, depois do pós-guerra, de notar que as questões que ele gostaria de fazer e acreditava eram mais fora da Universidade do que dentro da Universidade.
JH – Ethel, você sabe, por acaso, ou recorda, o nome desse jornal em que ele trabalhava? E outra questão:  em algum momento ele verbalizou, ele tinha alguma relação com os movimentos estudantis?  Havia alguma organização da qual ele participava, na esfera acadêmica, haja vista que ele cursou Direito? 
EFG – Não, não. Acho que na época era a Universidade Federal da Bahia. Eu acho que o jornal [no qual ele trabalhou] se chamava O Imparcial. Pelo o que eu entendi, que eu sempre ouvi, que ele participou bastante foi nos movimentos para a entrada do Brasil na guerra, do lado dos Aliados, contra o Eixo. Então essa foi a grande participação dele, do Mário Alves e de outros, participando de comícios e tudo mais. Quando o Brasil resolveu entrar na guerra e eles foram se alistar, diz-se que o general ou o comandante tinha muita raiva deles porque eles faziam todos os comícios, tudo. Ele acabou se alistando e conseguiu entrar, ele e mais um outro. Não lembro se era Ariston Andrade ou outro companheiro dele. O Mário Alves não, porque era muito franzino foi reprovado. E ele conseguiu se alistar como voluntário. Isso ele tinha vinte e três anos. Essa foi a participação nessa época estudantil.
PRD – Não existia um contato anterior do Jacob Gorender com o marxismo? Foi o jornal que, digamos, iniciou ele no Partido Comunista e o aproximou do marxismo?
EFG – Eu acho que sim. Eu acho que foi via contato de pessoas, de jornalistas que trabalhavam e o levaram para o Partido Comunista. Eu acho que foi esse o começo. Talvez ele já simpatizasse com alguma ideia, mas assim, de realmente participar eu acho que foi assim.
DCO – Quando ele retorna da guerra, como foi a trajetória política de alguém formado dentro do Partido Comunista Brasileiro (PCB), mas que posteriormente rompe e vai fundar  o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (o PCBR)? Você percebia a dimensão da importância que tinha o Partido na vida dele?
EFG – Vamos por partes. Quando ele volta da guerra ele começa a militar no PCB, que era o grande partido na época. Então, por volta de 1946, 1947, mais ou menos. E aí ele vem, não sei se inicialmente Rio de Janeiro e depois São Paulo, acho que foi primeiro Rio de Janeiro e depois ele foi para a São Paulo, o partido deslocava as pessoas. Em 1955 ele vai para a União Soviética, que o partido manda ele ficar lá, acho que dois anos, mais ou menos. Depois ele volta e se estabelece no Rio de Janeiro. A ruptura com o partido e a criação do PCBR já foi depois do golpe. Foi quando já estava a época da ditadura e teve a grande ruptura. Acho que foi 1968, mais ou menos, que ele, Apolônio e Mário Alves fundam o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário. Tentaram, parece que inicialmente, algum contato com o PCdoB, mas acho que as ideias não batiam – se submeter às coisas da bolha, aquelas coisas não era o princípio deles. O Marighella não acreditava em partido, então partiu para um grupo de guerrilha, foquismo como eles chamavam. Meu pai e o Apolônio, principalmente, acreditavam na política partidária, vamos dizer assim. E aí que eles fundam, se separando, já saindo do PCB e já brigando com Prestes e tudo mais. Então essa foi a fundação. Desse período de 1946 a 1955, mais ou menos, eu sei pouca coisa. Eu sei que ele militava pelo partido, escrevia nos jornais do partido, não sei se era Novos Rumos, Voz Operária . Ele tinha as funções lá dentro do PCB, ainda acreditando em todo o lado de Prestes, Stalin, todo aquele culto da União Soviética. Depois ele vai para a União Soviética e está lá quando Khrushchov faz a revelação dos crimes do Stalin, todo aquele choque. Como ele aprendeu russo muito fácil, ele era um dos poucos que entendia o que estava acontecendo, o que estavam falando, e sente o quanto as pessoas do partido não queriam acreditar naquilo, porque acreditavam no Stalin e tudo mais. Aí já começa um pouco, talvez, a quebrar todo aquele mito do Partido Comunista. Mas eu acredito que ainda era muito forte, era o que tinha, que era a vida dele. E ele volta para o Brasil e ainda continua militando no Partido Comunista até 1967, 1968, mais ou menos. Na verdade, ele foi, ao longo da vida, militante do Partido Comunista.
JH – Ethel, recuperando  um pouco o período anterior a essa inserção dele no PCB e da ida dele para União Soviética, período em que Jacob Gorender trabalhava no jornal, gostaríamos que você falasse  um pouco mais sobre a influência que essa atividade profissional e de subsistência teve nos ideais políticos do seu pai. Ele era um jovem de 23 anos apenas. Esta inserção na atividade jornalística foi determinando as escolhas posteriores dele em termos profissionais? Como é que você avalia isso, essa escolha dele, diante dos desafios que se tem diante das necessidades de reprodução da vida, da própria família? Você conseguiria falar algumas coisas  a respeito disso? Essa escolha foi muito importante, assim como o é para vários jovens, várias pessoas que se colocam na defesa de determinados ideais e que abrem mão também de muita coisa em virtude dessa luta política. Como é que você pensa isso, como é que isso foi se desdobrando na sequência dos acontecimentos da vida dele, da vida de vocês, enfim, como família ?
EFG – Quando ele entrou e depois voltou da guerra e aí, vamos dizer, mergulhou de cabeça dentro do partido, ele passou a ser um militante do partido. Então o partido remunerava pelo o que ele escrevia, pelo o que ele fazia. Ele era um funcionário do partido, vamos dizer assim. E foi nisso até 1967, 1968, quando ele rompe com o partido. E aí que ele passa a ter em plena clandestinidade toda a dificuldade do mundo, já com família, casado – eu já tinha sete, oito anos –, e de ter a dificuldade de manutenção da família. Provavelmente os meus tios ajudaram, de algum modo. Alguns companheiros devem ter ajudado e, talvez, ele já começasse a fazer algumas traduções. Não tenho certeza, porque realmente essa época é meio nebulosa, em 1968, 1969, é meio nebulosa. Mas, provavelmente, vivia de ajuda. A gente morava num apartamento que era em um subsolo, tinha uma série de dificuldades. Contava muito com a ajuda de muitos companheiros. Eu estudava numa escola judaica de esquerda, que tinha bolsa, tinha todas as facilidades dentro desse esquema, porque eram pessoas que ajudavam a gente. Ganhava roupa até, da comunidade judaica aqui de São Paulo, que me davam roupas usadas, para minha mãe também. Meus tios no Rio de Janeiro, tanto a família do meu pai quanto a de minha mãe, também ajudavam. E depois, quando ele sai da prisão, sim, aí ele começa a ter que exercer atividade fora do partido, porque aí já não é mais, já não faz mais parte de nenhum partido. Então aí é começar o trabalho, propriamente dito, já desvinculado de qualquer parte política, vamos dizer assim.
PRD – Sobre essa origem judaica da família Gorender, na sua opinião, os princípios judaicos influenciaram de algum modo essa concepção materialista da realidade de Jacob Gorender? Tendo já uma aproximação com o marxismo ele fazia uma espécie de desvinculação das influências judaicas com o materialismo?
EFG – Ele assumia que muito do que ele era ele tinha um modo judeu de ser, eu acho que passa muito pelo princípio do estudo. Para um judeu é fundamental estudar, ter conhecimento. Não só da cultura judaica, mas como da cultura em geral. Talvez se ele não fosse o que era ele tivesse sido um rabino, pelo gosto do estudo. O fato de meus avós não serem judeus ortodoxos não encaminhou para esse caminho até, eu acho. Mas ele não deixou em nenhum momento de ser judeu. Óbvio, nunca praticou, nunca vi. Eu estudei em escola judaica porque a escola judaica que eu estudei chamava-se Sholom Aleichem, que é um escritor judeu. Eu estudei nessa escola quando a gente morou em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, que tinha lá, estudei no Rio de Janeiro quando eu fiquei lá, e estudei aqui em São Paulo. E todas essas escolas eram muito ligadas à comunidade judaica de esquerda. E eles tinham princípios, a daqui de São Paulo, muito interessantes, que quem podia pagava a mensalidade de outro aluno que não pudesse estudar. Então já começa por aí. Eu diria que a minha mãe, que não era judia, era mais judia do que meu pai, em termos de conhecer todos os rituais, as coisas que eu aprendi na escola. Mas em casa nunca, absolutamente nunca, teve qualquer prática. Somente quando minha mãe faleceu – minha mãe enterramos num cemitério público – que um pouco depois ele veio me falar que quando ele morresse queria ser enterrado num cemitério judeu. E foi a única menção, ao longo de todo esse tempo, do fato de ser judeu. Ele escreveu o prefácio de um livro que se chama Marxismo e Judaísmo da Arlene Clemesha, em que ele coloca bem isso que tanto a esquerda quanto a direita queriam a eliminação dos judeus, que não era uma coisa muito fácil, nem para a esquerda nem para a direita. Num congresso em Havana tinham falado em eliminar Israel, que era uma coisa um pouco à parte. Ele era obviamente antissionista, mas não antissemita.
JH – Você comentou que foi estudar em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Queria que você localizasse um pouco a razão dessa ida da família para o Rio Grande do Sul. Em que circunstâncias isso ocorreu? 
EFG – Isso foi em plena clandestinidade. Quando teve o golpe ele morava no Leblon com a minha mãe, morava num apartamento alugado. E ele estava em Goiás, a serviço do partido, dando palestra ou alguma coisa, quando aconteceu. Aí ele teve de cair na clandestinidade. Obviamente minha mãe e eu, provavelmente, fomos morar com os irmãos dela, que a acolheram. Meu avô, por parte de mãe, nessa época era vivo. Avisando que meu avô por parte de mãe foi um dos fundadores do Partido Comunista Brasileiro. Então, comunista de pai e mãe, vamos dizer assim. De pai à avô, de avô e pai e mãe, e toda a família. Então eles já sabiam das dificuldades todas. Meu avô muitas vezes foi clandestino, foi muitas vezes preso. A família já tinha um conhecimento dessa logística de se viver fora da lei. Depois que ele consegue se estabelecer ele vai para o Rio Grande do Sul. Mandam ele para Porto Alegre. Então ficamos lá, não sei dizer se um ano, dez meses. Ficamos um tempo, eu devia ter quatro ou cinco anos, e me puseram nessa escola lá. Eu tenho uma lembrança muito vaga dessa época. E aí quando ele começa, parece que colocaram ele num bairro chamado Bom Fim, que tinha muitos judeus e que conheciam ele. Quando ele começa a perceber que poderia ser identificado e denunciado, ele sai de lá, com o risco dessa identificação. Aí ele vem para São Paulo e a gente vai para o Rio de Janeiro, inicialmente. Isso deve ter sido em 1965, 1966, mais ou menos.
JH – Ethel, existem argumentos que expressam questionamentos sobre a coerência entre os ideais de intelectuais e militantes de esquerda com suas práticas. Afirma-se que há um distanciamento entre essas formas de pensar e a própria forma de viver desses intelectuais e militantes. Como é que você, na convivência com seu pai, percebia isso? 
PRD – Complementando a questão posta, como é que os ideais marxistas orientavam a vida cotidiana? Ele era o tipo de marxista insistente com seus ideias a todo momento? Porque, lendo os textos dele, se percebe que ele era um marxista intransigente, mas na vida cotidiana  gostaríamos de saber como se traduzia isso. 
EFG – Não, na vida cotidiana não. Meus pais eram muito solidários, eram pessoas muito generosas. Quando a gente começou a ter condição de ter empregada ou alguma coisa assim, sempre foi uma coisa muito além do que a gente via nas outras casas, esse tipo de coisa. Mas ele não pregava essa parte no dia-a-dia, não. Ele tinha um rigor, por exemplo. Eu lembro quando eu estava no ginásio, eu acho, quando a gente já estava convivendo aqui e fui fazer um trabalho ou alguma coisa e copiei da enciclopédia. A gente tinha comprado a Barsa, que era a grande enciclopédia da época, em 24 prestações e tal. Eu copiei o texto lá e ele me deu um esporro, que não era para copiar. Eu tinha que escrever com as minhas palavras. Então isso sim. Ele tinha esse rigor de intelectual, de trabalho, mas não de marxismo e essas coisas. Inclusive, assim, nunca me influenciou em nada de que eu fosse ser ou eu entrasse em algum partido ou participasse de movimento estudantil, nada. Participei um pouco, tive algumas leituras, mas mais pelo fato de eu estudar em colégios de esquerda. Então eu fiz esse colégio judaico, depois eu fui para um colégio aqui em São Paulo, chamado Equipe, que é até hoje mais voltado para o pessoal de esquerda. Um companheiro dele conseguiu uma bolsa para mim lá. Então meu convívio nesse ambiente, com outras pessoas também de esquerda, é que me levou mais nisso, mas não em termos de “não, tem essa divisa. Vai para isso ou vai para aquilo”. Nunca colocou isso. Acho que ele nem tinha grandes interesses de que eu fosse para essa área. De tudo que ele tinha vivido, tudo o que era o Brasil e o que tinha acontecido, não era a perspectiva deles que fosse esse o meu caminho.
PRD – Ainda sobre a vida cotidiana, e na mesma linha dos gostos pessoais, seu pai torcia para algum time de futebol? 
EFG – Ele não torcia para nenhum time em específico, mas tinha simpatia pelo Botafogo, provavelmente por causa do Garrincha. Ele havia me levado já para ver um jogo do Santos, também, no Pacaembu, para ver o Pelé jogar. Ele tinha grande admiração pela figura do Pelé e Garrincha, mas time, não.
DCO – Sobre essa questão do convívio com os camaradas, Ethel, você já citou o nome de alguns célebres pecebistas, como o Mário Alves e Apolônio de Carvalho. A gente conhece a história, a relação que ele sempre cita em algumas entrevistas, com o Diógenes Arruda, com o Pedro Pomar, até com o Carlos Marighella e com o João Saldanha. Nossa curiosidade está mais diretamente voltada para saber as impressões dele sobre a denominada Guerrilha de Porecatu, no norte do Paraná. Seu pai, do PCB, foi um dos únicos autores que fez comentários posteriores a esse evento. Por que houve um silenciamento do partido? Perguntamos isso porque esse silenciamento ocorreu justamente no momento da Guerrilha de Porecatu e no qual foi elaborado o Manifesto de Agosto de 1950 que defendia a posição pela luta armada. Lembro, aqui, das posições de Gregório Bezerra, – que atuou diretamente em Porecatu – e de João Saldanha – que depois veio a ser jornalista esportivo, comentarista e técnico da seleção brasileira. Como se dava isso para além das reuniões do partido? Ele tinha aproximação com esses militantes? Sabemos  que Mário Alves era amigo dele, pessoal. E esses outros citados ou algum outro camarada do partido também eram? Você tem conhecimento se ele tinha estreitamento de relação para além da organização política com estes personagens?
EFG – O Mário Alves era muito amigo dele, acho que era a pessoa que ele mais admirou em termos intelectuais e de vida. Tanto que ele dedicou o Combate nas Trevas à memória do Mário Alves, à memória da vida e da morte, que foi torturado até a morte. Pelo convívio que eles tiveram desde a Faculdade, depois dentro do partido, depois dentro do PCBR e tudo mais. Do João Saldanha muito pouco, não tenho nenhuma informação. O Arruda eu ouvi mais pela minha mãe. Meu pai eu acho que tinha uma certa resistência com o Arruda. O Arruda era um pouco, vamos dizer assim, “stalinista”, entre aspas. E o Arruda quando voltou, eu tive contato, eu lembro mais através de minha mãe, que ele admirava muito meu avô. Ele morreu um pouco depois da volta do exílio. Lembro que a gente foi no enterro dele, eu, minha mãe e meu pai, tudo. Mas o contato com o Arruda foi muito pouco, por assim dizer. O Mário Alves eu não conheci, porque ele foi morto na clandestinidade. O Apolônio eu conheci quando voltou do exílio. O Apolônio era uma figura fantástica, a gente tinha uma proximidade grande com os filhos, com um dos filhos do Apolônio, que morava perto da gente, em São Paulo, nessa época já dos idos de 1978, 1979, por aí. Então a gente tinha uma proximidade grande com o Apolônio e ele era uma grande figura. Deste sim. Do Marighella eu sei que ele o admirava muito, mas na parte final, quando Marighella vai para luta armada eu acho que ele tinha desavenças. Desavenças não, discordâncias. Não vou dizer desavenças, mas acredito que discordâncias do rumo de ir para a luta armada. De considerar de que o que se fez foi – apesar de que foi valentia, de que foi uma dedicação a uma coisa – foi terrorismo o que rolou nessa época. Mas, ele tinha uma grande admiração. Ele considerava o Marighella um dos caras mais valentes que ele já tinha conhecido.
JH – Ethel,  temos um profundo reconhecimento do seu pai em virtude da atuação política e da produção intelectual dele. Você falou que seu avô também tinha esse perfil, vinculado a uma forma autodidata. Você disse que seu pai foi se constituindo como um intelectual e que, a partir dessa capacidade, passou a dominar línguas. Por favor, nos fale um pouco a respeito disso. Você sabe quais eram essas línguas que ele dominava e se isso, em alguma medida, levou-o a ser tradutor? Ele atuou com a editora Abril. E, em relação a essa atividade, se no período que ele esteve vinculado a editora, esta atividade foi uma atividade mais exclusiva? Esta vinculação se deu exatamente em virtude dessas habilidades linguísticas dele, do domínio de línguas? Foi por isso que ele foi trabalhar na editora? Havia nesta vinculação o peso da necessidade de garantir a sobrevivência familiar?. Como é que se deu essa relação com a tradução e com as atividades de tradução?
EFG – Ele aprendeu as línguas. Ele realmente era muito estudioso, inteligente, uma capacidade intelectual muito grande. O que eu falei: ele aprendeu russo, estando na União Soviética em pouco tempo, e aprendeu a ler, dominar e a poder ler os jornais, quando Khrushchov fez o pronunciamento. Inglês ele fazia tradução. Serviu muito para ajudar depois quando ele saiu da prisão, mas ele lia também espanhol, italiano. Alemão eu acho que ele lia, não tenho grandes certezas. Francês, com facilidade. Eu vejo muito pelos livros que tinha em casa. Com a tradução foi grande necessidade, porque na hora em que ele vai preso e depois é solto e já está fora do partido, ele tem que ter uma atividade. Inicialmente o que surge é a tradução e põe minha mãe como testa de ferro, porque ele saiu da cadeia como comunista e tudo o mais. Dos companheiros ele já tinha gente que trabalhava na Abril, que conseguia traduções de livrinho policial, de coisas assim para ele fazer, com a minha mãe como testa de ferro. Lembro que eu ia com ela lá, para a gente pegar o material e depois trazer para casa para ele fazer, e depois levava lá. Inclusive tem alguns livrinhos que tem o nome de minha mãe como tradutora. Isso foi meio de vida, foi como começou a trabalhar. Depois ele foi trabalhar numa empresa de publicidade, que algum companheiro dele conseguiu também. Ele trabalhou ali durante uns dois anos. Óbvio que não era muito a praia dele nesse momento. Depois ele conseguiu também com companheiros que tinham condições, que bancaram que ele ficasse, eu acho que um ou dois anos, escrevendo O Escravismo Colonial. Então, só dedicado a escrever, fazer toda a parte final da pesquisa. Óbvio que ele já tinha começado a esboçar antes, mas digo a propriamente escrever. Acho que foi em 1976, ou 1977, que ele entra na Abril, aí já para trabalhar com edição mesmo. Aí ele trabalha, se não me engano, na edição d’Os Pensadores, d’Os Economistas e outras coleções da época. Para mim foi uma época excelente porque eu ganhava todas as coleções da Abril, e eu diria que têm duas coleções da Abril que fizeram a minha juventude, Os Cientistas que foi uma coisa muito interessante, e eles tinham uma coleção chamada Os Clássicos da Literatura Juvenil que foi uma coisa fantástica. Depois vieram as de música e tudo mais. Foi uma época bem interessante essa. E nessa época muitos companheiros dele, inclusive, que tiveram na prisão com ele, também trabalhavam na Abril.
JH – Então, na verdade, esse vínculo se deu em dois momentos e de formas diferentes, uma mais explícita, como formal e reconhecida, e outra por via da mediação da figura de sua mãe? 
EFG – Isso. Foi como ele trabalhou. Foi logo depois da cadeia como tradutor e depois, eu acho que é a partir de 1977, que ele vai trabalhar registrado.
DCO – Ethel, você nos citou a obra O Escravismo Colonial. Essa obra foi a que colocou o seu pai no panteão da genialidade das Ciências Sociais brasileiras, com todo o debate de modo de produção. Essa obra acabou baseando o atual debate sobre o racismo. O conceito de racismo estrutural que o professor Silvio Almeida desenvolve na USP tem a obra de seu pai como referência. No próprio movimento negro o Escravismo Colonial é valorizado nos debates. Mário Maestri fala que foi uma revolução copernicana nas Ciências Sociais. Além dessa obra, tem também A Escravidão Reabilitada e, em ambas as obras, Jacob Gorender fala diretamente sobre essa estrutura da sociedade brasileira cunhada no racismo. Você já citou a questão da influência da origem judaica de sua família e como essa condição de ser historicamente caçado por vários regimes edificou a própria personalidade dele. Como seu pai entendia o racismo e como ele compreendia a luta antirracista na luta da transformação social brasileira? Tinha algum comentário disso no âmbito doméstico? Lógico, pela postura humanista que ele assumia, sua família não perpetuava racismo e injúrias raciais, mas existia alguma menção disso no dia-a-dia?. Como que era feita a apreensão desse debate no âmbito doméstico? Você percebia o porquê desse olhar para essa questão estrutural do racismo na sociedade brasileira?
EFG – No âmbito doméstico, obviamente, meus pais eram totalmente antirracistas. Isso para a gente era uma coisa horrível, sempre foi. Meu avô por parte de mãe era filho de um espanhol com uma negra que tinha sido escrava. Para a gente era… Não existia você discutir o racismo. Eu vinha de um meio em que… Eu tenho sangue negro e sangue judeu, então para mim não existe ter qualquer… Não se passa pela cabeça a gente viver qualquer preconceito, isso não entra. Não é concebível. Mas, não tinha uma fala cotidiana, não existia. Acho que isso ele passou pela obra, pelos escritos dele. Eu lembro que eu reli O Escravismo Colonial, um pouco tempo atrás, e principalmente o A Escravidão Reabilitada, que eu acho que é onde ele – e o A Escravidão Reabilitada principalmente – reafirma muito tudo isso frente aos meios acadêmicos. Isso aí eu estou falando sem qualquer conhecimento, mas sabendo de todo o “anti” que ele falou quando ele trouxe tudo isso. Principalmente pela A Escravidão Reabilitada que eu vejo que ele descasca meio mundo lá e coloca os que queriam reabilitar toda essa cultura.
PRD – Já que você começou a falar do A Escravidão Reabilitada, vamos fazer uma pergunta justamente mais focada sobre O Escravismo Colonial. Como foi mencionado anteriormente, O Escravismo Colonial, de certa forma, foi um ponto fora da curva nas Ciências Sociais, pois ele incomodou muita gente. Este livro aparece como uma primeira obra dele. Já, depois, no centenário da abolição da escravatura, no A Escravidão Reabilitada, vamos encontrar a reafirmação das teses desse livro e contra a persistência daquelas teses que ele já tinha contestado n’O Escravismo Colonial. De certa forma incomodou muito as Ciências Sociais. Do que você tem lembrança, como é que essa questão da realidade brasileira, que está presente principalmente n’O Escravismo Colonial, passa a ser um objeto de estudo do Jacob Gorender, como um enfrentamento político dele? E, se você puder acrescentar, como foi a criação dessa obra? Numa versão recente d’O Escravismo Colonial, um dos prefácios quem faz é a Dilma Rousseff e, nesse prefácio, ela diz que durante a estadia na prisão, onde seu pai e a Dilma se conheceram, ele já tinha pronto uma parte d’O Escravismo Colonial. A ex-presidente disse que ele tinha medo de que os manuscritos tivessem sido perdidos ou capturados pela polícia. O livro só foi publicado em 1978. Como é que se deu todo o processo de elaboração deste livro? 
EFG – Acho que a elaboração ele começou, talvez, antes até da prisão propriamente dita. Talvez, quando caiu na clandestinidade, em 1964, 1965, ele tenha começado a escrever ou a esboçar, ou a pensar. Durante o tempo da cadeia, acho que até porque ele tinha mais tempo lá, começou a rascunhar aquilo, a ter mais material ali. Agora, ele vai fazer toda a pesquisa – ele ia quase diariamente lá na Biblioteca Mário de Andrade, foi em outros estados para pesquisar os dados e tudo – em 1975, 1976, mais ou menos. O livro é lançado em 1978. Ele escreve durante esses dois anos, sempre com essa parte da pesquisa ele fazendo. A gente vê o quanto a internet facilita tudo na vida hoje, mas na época era indo atrás dos livros, das coisas, anotando. Acho que até copiadora era muito caro, então ele devia anotar essas coisas todas, para depois escrever na máquina de escrever antiga. Alguns amigos ajudaram, talvez, na parte mais da bibliografia, alguma coisa assim, mas o escrever foi todo ele fazendo na máquina e indo atrás das informações nesses lugares. Óbvio, ele deve ter ido em Salvador, Minas Gerais e Rio de Janeiro também. Essa parte da pesquisa que sedimentou a obra foi nessa época, e por isso que ele precisava de que alguém ajudasse a manter para que ele pudesse elaborar o livro. E eu acho que assim, talvez da contestação, ele colocou muito do que ele acreditava e que ia contra muito o que, talvez, até a esquerda acreditava. Contestou muito do que a esquerda acreditava. De algum modo ele não era ligado a nenhuma academia, por mais que talvez tivesse ambição dessa parte. Não tinha nenhum elo, nenhum vínculo. Isso, de algum modo, permitia que ele colocasse de forma mais contestatória, não sei – isso eu estou colocando como eu imagino. Porque ele não estava ligado a uma corrente, vamos dizer assim, de uma universidade ou de outra, alguma coisa assim do gênero.
JH – Ethel,  esse confronto com  as formas de pensamento ou com as interpretações da formação sócio-histórica era comumente comentado no cotidiano? Ele chegava a fazer comentários sobre discordâncias em relação a determinados autores que faziam o debate sobre a formação sócio-histórica do Brasil?
EFG – Isso não, porque a gente, minha mãe também, não fazia parte da esfera acadêmica. E eu também não. Esse tipo de conversa não passava. A gente sabia que ele discordava de meio mundo, isso sim. E sempre foi. Isso a gente sempre soube. Mas, especificamente, eu não sei te dizer, quais pensadores ele ia mais contra. Mas, o que eu senti e óbvio, a gente já sabia que ele discordava, principalmente quando eu reli. Na época quando ele lançou o A Escravidão Reabilitada talvez eu já estivesse na faculdade e meu meio de interesse já eram outras coisas. Mas agora, relendo, sim, você vê que ele contesta muita gente. E tem uma coisa interessante, eu vi que depois vocês perguntam da biblioteca dele, ele lia grifando e anotando na margem. Então tem vários livros que ele escreve lá: “que besteira”, “que bobagem”, “tá tudo errado”. Tudo isso ele colocava.
PRD – Essa biblioteca de seu pai ela ainda existe? Parte dela foi perdida por conta de perseguição, mudanças etc.? Ela é acessível à pesquisa ou não? É só uma biblioteca com o acervo pessoal?
  
EFG – É pessoal, a gente não tem nenhuma fundação. Dentro da minha vida a biblioteca é uma coisa fundamental, não só a dele como a minha também. Livros e etc. Quando ele morreu, pensar em me desfazer da biblioteca era algo inimaginável. Seria ficar órfã mais uma vez. A princípio foi algo imexível, embora se eu quisesse fazer algo com ela… Eu também não tinha contato com ninguém de universidades e outras coisas. Eu moro perto de onde era a casa dele. A casa dele eu mantive pela biblioteca, porque era muito grande e eu moro num apartamento pequeno, não teria como colocar. Por razões logísticas também, a mãe da minha companheira mora perto, facilita para a gente cuidar e tudo mais. Depois de um tempo, óbvio, eu também tenho vontade de que a coisa gire. Eu acredito nas coisas que se movem, vamos dizer assim. E eu comecei a ver, somado a isso e agora com um pouco mais de tempo – embora eu também tenha pouco tempo –, de começar a ver primeiro o que eu ia guardar daquela biblioteca. Então eu comecei a ter um pouco de tempo, ainda muito pouco. Consigo, às vezes, um fim de semana ou outro e ir lá para começar a ver e separar do que eu vou guardar para mim. Tem muita coisa ainda. E aí eu comecei a separar as coisas. Obviamente que literatura e tudo isso eu vou conservar, partindo do seguinte princípio: tudo que ele escreveu, óbvio; os livros que foram dedicados à ele, por amigos e tudo mais, e tudo que ele leu. E aí eu sei que ele leu porque ele rabiscava. Então todos os livros que ele leu eu estou separando. Isso eu estou aguardando, além daqueles que eu acho que mesmo sendo da área de humanas, se eu me aposentar – e se eu conseguir me aposentar –, eu vou ler. Por interesse mesmo, ainda que sejam coisas não relacionadas à medicina. Os que ele não leu, porque tem livros lá que estão intactos e eu vejo que ele não leu, não abriu, qualquer coisa assim, esses eu separei e através de um amigo da Fundação Perseu Abramo a gente está levando lá para a biblioteca do MST, mas são esses que ele nem tocou. E os outros eu estou separando. Ainda, por enquanto, só separando, sem qualquer critério de catalogação ou coisa assim. Espero que quando eu me aposentar, é conseguir pegar mais ou menos uma linha de tudo que ele leu, de tudo que ele anotou, e até das coisas que ele escreveu em cada livro. Do Instituto de Estudos Avançados da USP tem vários artigos dele que eu vejo lá. Então esses eu vou separando. E, assim, dentro das coisas que ele anota. Tem anotações que são d’O Escravismo Colonial mesmo, dos cadernos que ele escreveu, isso tudo eu estou separando. É mais ou menos por aí, mas não tem nada catalogado, não tem nada organizado por enquanto. Tem pouco tempo que eu comecei a mexer e falei assim: “não. Vamos começar a dar uma resolução nisso”.
JH – Ethel,  gostáramos de falar um pouco dessa questão da relação do seu pai com a universidade. Ela se dá  um pouco mais tardiamente, inclusive. Pensando o que em alguma medida você já falou um pouco a respeito disso. Mas, na sua avaliação, o que ele produzia, o que ele publicava, as formas de manifestação dele a respeito de questões muito importantes para se pensar a realidade brasileira, em alguma medida você acha que esses posicionamentos  impediram de ele se aproximar da universidade num tempo anterior? Ou a própria atividade política dele, considerando todo o período da ditadura e depois, também, o processo de redemocratização, acabou por determinar esta relação tardia com a universidade? Em outros termos, você acredita que essa militância política e as concepções que ele tinha, do ponto de vista teórico, em alguma medida, ao invés de potencializar – em virtude de toda a competência intelectual dele – impediram de concluir a própria formação e ingressar na atividade acadêmica?  Você tem alguma avaliação em relação a isso?
EFG – Olha, acho que é o próprio acesso à universidade. Porque uma vez que ele não era formado, porque ele não concluiu o curso de direito, ele sair da prisão, da clandestinidade e ter que trabalhar, não vejo como ele teria acesso à universidade. Vamos dizer, ter que entrar de novo em alguma universidade, fazer o curso já com cinquenta e poucos anos e fazer todo o processo de pós-graduação e tal. Acho que não cabia naquele momento e não tem meios de entrar na faculdade sem ser essa via. Ele vai virar doutor honoris causa em 1994 pela Universidade Federal da Bahia, então bem tardiamente. Eu lembro da primeira palestra que ele fez depois que ele saiu da prisão, foi em 1978 ou 1979, talvez tenha sido depois da anistia. Foi na Associação dos Professores de História, não lembro se não foi num prédio do Sindicato dos Jornalistas, me lembro que era uma sala pequena. Foi a primeira vez que eu vi ele falando para um público. Então foi a primeira vez que ele conseguiu fazer isso. Nesse meio tempo, depois que ele sai da Abril, que ele escreve os livros – depois ele sai para escrever O Combate nas Trevas e tudo mais –, ele chegou a dar aula na Escola de Sociologia e Política, que ficava aqui no centro de São Paulo. Ele deu aula lá durante uns dois anos. Mas a entrada na universidade ela é limitada pelo próprio acesso na universidade.
JH – De todo modo, ele produziu uma obra extremamente importante, fazendo um debate essencial e que vem contribuindo com a formação de novos pesquisadores. Essa socialização por dentro do espaço acadêmico acabou acontecendo.
EFG – Sim, sim. E tanto que assim, é interessante porque, por exemplo, eu também não segui carreira acadêmica, eu cheguei a fazer mestrado, mas depois nem me interessei em fazer doutorado. Eu tenho minha vida prática como profissional médica. E podia ter seguido, tenho primos que fizeram medicina e seguiram carreira acadêmica, mas não me passou pela cabeça porque eu não tive essa vivência.
DCO – Ethel, além d’O Escravismo Colonial e d’A Escravidão Reabilitada, outro livro do seu pai que colocou fogo no debate foi o Marxismo sem Utopia. Durante a vida dele essa forma crítica contumaz, essas interpretações marxistas – ele faz um debate inclusive com o próprio Marx – ele não tinha receio de falar que não foram equívocos, que foram mesmo utopias. Afirmava que o marxismo surge da militância do Marx e do Engels, com o debate com os anarquistas e pontuando o modo anarquista de se tentar organizar a classe trabalhadora. O seu pai chegou a dizer que Marx não tinha conseguido superar a utopia. Também falou do caráter reformista do proletariado e que Marx tinha depositado muita confiança nesse processo de transformação da sociedade, via a ação do proletariado. Como que esse livro, que salvo engano  foi escrito quando ele já estava próximo dos setenta anos, repercutiu no dia-a-dia? Teve mais falas relacionadas a ele do que O Escravismo Colonial e A Escravidão Reabilitada?
EFG – Não, esse já não. Também não sei se por conta de todas as desavenças, mas em termos de repercussão dos livros dele, sem dúvidas, foi O Escravismo Colonial, A Escravidão Reabilitada e o Combate nas Trevas. Acho que esses três são o centro da obra dele. Quando ele faz do Marxismo sem Utopia ou mesmo quando ele fazia algumas entrevistas, onde ele falava que em Cuba era a socialização da miséria, como ele falou em uma das entrevistas – inclusive eu tenho amigos meus, de esquerda, que desceram a lenha. Nisso ele falava e tinha ido à Cuba, em 1970, 1980, mais ou menos nessa época, ou talvez na década de 1990. Então ele foi lá, ele viu, presenciou essa parte. Do mesmo jeito em que ele estava na União Soviética quando caiu o Gorbatchov, e que ele relata que ele viveu lá com as pessoas nas casas, nos bairros, conversando – como ele sabia russo. A minha mãe também, do tempo… Ele conheceu a minha mãe na União Soviética, quando eles foram lá em 1957. Ele foi em 1955, 1956 e a minha mãe foi em 1957. Eles tinham uma visão crítica da União Soviética, de toda essa coisa. Óbvio que apesar de tudo isso, quando caiu o muro e tudo mais, foi o fim de um castelo, vamos dizer assim. Dava para sentir isso, apesar de já saberem o que ia acontecer, mas ainda eles tinham uma convicção de que aquilo podia ser melhorado, que poderia ter outros caminhos. Agora o enxergar como seriam esses outros caminhos é que exigiria muita discussão.
PRD – Para além dos livros e do que o seu pai já escreveu e publicou, como é que você entende que seu pai compreendia o Brasil? O que ele apontava como os principais problemas do Brasil? E, quais eram as perspectivas que ele via para o país frente a toda essa realidade que ele viveu? É importante lembrar que ele viveu um período de grande efervescência política no Brasil. 
EFG – Já para o fim acho que já descrente, um pouco. Somado com tudo isso, com a queda da União Soviética, com os caminhos da esquerda. Apesar de votar e tudo, ele não era petista, digamos assim. Não se filiou. Diferente do Apolônio que participou até da fundação, ele não era um militante petista. Ele tinha várias questões até. Eu não sei se descrente ou talvez buscando alguma coisa para acreditar de como sair aonde a gente estava. Agora é mais difícil ainda de pensar de como a gente está e para aonde a gente vai, e como a gente ia, porque o mundo em si mudou muito. De entender de toda essa onda direita quase fascista no mundo inteiro. Eu acho que ele já vinha numa descrença nisso tudo, já num certo desânimo eu diria. Ainda acreditando no socialismo e tudo mais. Tudo aquilo que ele lutou a vida inteira ele viu como melhoras, houveram melhoras para a classe trabalhadora, que aquilo agregou, mas muito aquém do que talvez eles vislumbravam durante toda a época de luta deles.
JH – Como somos leitores da obra de seu pai, a gente sabe da importância dele pelos debates que ele fez. Até abordamos anteriormente a habilidade que ele tinha de colocar determinadas questões e criar polêmicas e reflexões a respeito de temas muito importantes. Mas, a partir desse sujeito que você conviveu, como é que você pensa, o que poderíamos dizer em relação ao que Jacob Gorender contribuiu para pensar o Brasil? Quais foram os elementos mais importantes e que ele sempre destacava ou pensava em relação ao próprio país? Além disso, na sua opinião e considerando o acesso que você tem ao que ele produziu, o que há de mais importante no legado dele, do ponto de vista intelectual? 
EFG – Aí é a essência da vida dele. Ele foi um cara que… Ele foi enterrado num cemitério judeu, e na lápide costumam colocar algum escrito além da data e eu coloquei “um grande brasileiro”, porque é o que eu sinto em relação não a figura de pai, mas em relação a figura Jacob Gorender. Eu acho que era o que tinha que estar ali naquela lápide. Eu vejo ele como alguém que com vinte e três anos, sendo judeu, vai como voluntário lutar na Europa contra um exército fascista, nazista, que se fosse pego ia ser exterminado, porque era judeu, independente se era brasileiro ou não, mas ele era judeu. Então era um risco a mais. Na prática ele doa a vida dele à militância política. Com todo o conhecimento poderia ter ido ganhar dinheiro, fazer uma carreira de outra forma, mas não, ele quis fazer isso. Foi a importância, pensando naquilo que ele acreditava, militando naquilo que ele acreditava. Depois poderia ter ido só trabalhar, trabalhar na editora Abril, depois se aposentar e ficar por isso mesmo, mas não. Ele quis escrever e escreveu, contribuiu para um debate. Essa foi a essência da vida dele, foi a linha da vida dele. É isso que traz e identifica.
DCO – Nessa seara dos valores, qual desses valores, desses conceitos, desse modo de viver, qual a influência desse legado de seu pai, dos seus ensinamentos que se perpetuaram na sua vida e que você pode conosco compartilhar? 
EFG – Eu nunca fui militante, participei na época de faculdade de movimento estudantil, Centro Acadêmico e essas coisas todas, mas depois fui me distanciando da parte política. Mas mais é na minha vida prática. Eu fiz medicina, fiz pediatria primeiro, depois fiz oncologia pediátrica. Sempre trabalhei em serviço público. Foi ao longo de minha vida. Não tenho consultório… Isso foi natural, foi o caminho natural escolhido. Eu sempre gostei da parte de medicina, de ciências propriamente dita. Também eu encarava isso, e fui ser médica, vendo toda a dificuldade dos meus pais. Sabia que medicina era uma coisa que pelo menos emprego eu ia ter, tendo vivenciado toda a dificuldade financeira que a gente teve durante um bom tempo. Então, é óbvio que isso também pesou sobre minha escolha. Embora na época de prestar faculdade eu pensei em fazer jornalismo, economia e outras áreas de humanas. E meu pai mesmo que me desestimulou, falou “faz medicina”. E foi esse o caminho. Mas o legado é mais no meu modo de vida, na maneira como eu me relaciono com o mundo. Não faço política, óbvio. Mas as pessoas que me conhecem sabem, desde a época da faculdade, do colégio. Mantenho amizade com meus amigos de esquerda desde a época do ginásio, do colégio, da faculdade. A gente ainda convive. É mais ou menos nessa linha em termos de vida. Não sou militante, óbvio que voto na esquerda e tudo mais. Me incomoda o Brasil do jeito que está. Quando meu pai faleceu – em 2013, bem no meio da manifestação que começou dos vinte centavos – é interessante porque eu comecei a reler o Combate nas Trevas e eu via exatamente aquilo que ele descrevia no começo do livro, aquele clima da época do Jango, em 1962, 1963 e que aí desembocou na ditadura. E a gente foi para o mesmo caminho, parece que seguiu, a história se repetindo como farsa, sempre, mas se repetindo. E me dá um certo desânimo em relação ao futuro, do país e do mundo. Às vezes fico pensando de como o mundo… Interessante ter um grupo, no meio médico em que a grande maioria é de direita – um pessoal bastante de direita, eu diria –, mas tem a turma de esquerda e no meu grupo de esquerda se fala “se acontecer algo, vamos para outro país”. Mas que país? Se a direita está ganhando em tudo quanto é canto, está subindo em tudo quanto é canto. Às vezes dá um certo desânimo isso. Mas minha convicção, minha prática diária é dentro de tudo que eu vivi. Eu não tenho como escapar disso. É interessante que meu nome é Ethel por causa da Ethel Rosenberg, do casal Julius e Ethel Rosenberg. Minha mãe sempre queria que eu tivesse este nome por causa deles. E quando eu era pequena, lá no Rio de Janeiro, tinha uns amigos do meu avô, operários e comunistas, e eles sempre para me provocar perguntavam se eu sabia o porquê eu me chamava Ethel. Então eu carrego isso já no nome, na vida. Não tenho como escapar disso.
PRD – Muito bom. Por fim, gostaríamos que nos falasse como é que você descreveria toda essa trajetória de seu pai e o legado teórico e político deixado por ele? 
EFG – Foi um grande legado. Eu, às vezes, lamento não ser da área de humanas, talvez comunicóloga, talvez nessa área, para ter conseguido fazer alguma coisa em termos de valorizar mais. Eu tenho sérios questionamentos dessas coisas de institutos, de fundação – eu acho muito personalista –, mas eu acho que sim de valorizar a obra dele, valorizar a vida dele. E eu colocaria a vida dos dois, do meu pai e de minha mãe. E óbvio, trazendo meu avô também. Foi uma família que brigou pelo o que acreditava. A minha mãe ter ido para a União Soviética – ela era militante do partido da linha de bairro, alguma coisa assim –, de ter ido com a fé naquilo que ela estava indo, embarcando para a União Soviética num navio, é uma coisa meio impensável assim. Então foi uma família que acreditou muito. Eu ainda penso em algum dia fazer alguma coisa que traga isso. Não personalista, tanto que quando eu falei com esse meu amigo da Perseu Abramo eu disse que não queria fazer uma grande doação da biblioteca do meu pai. Não, eu quero em que na medida em que eu for tirando os livros que ele não usou ir dando para quem isso seja útil. Esse é o caminho. Mas acho que ele vai ser lembrado, isso se perpetua na obra dele propriamente dita. Mas ainda penso em fazer alguma coisa, mas ainda não sei te dizer o quê.
JH – Ethel, espero que não tenhamos lhe cansado muito, mas queremos expressar  que foi  um grande prazer poder conversar com você, poder conversar sobre seu pai, sobre a importância dele. Esperamos ter a oportunidade de poder socializar o conteúdo desta entrevista  para que as pessoas conheçam um pouco mais de Jacob Gorender, para além  do  das obras e dos escritos aqui mencionados, mas outras dimensões da vida dele. Foi uma entrevista para conhecer, de fato, um pouco mais desse intelectual que deixou disponível uma obra que é discutida no âmbito acadêmico, embora não tenha feito parte desse circuito efetivamente. 
EFG – Gostei muito da entrevista, para mim foi um prazer muito grande também. Estou à disposição…
Referências
ANDRADE, Mário de. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. São Paulo: Martins, 1975.
Entrevista concedida em 14/10/2022.

Últimas Notícias