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Hidrelétricas : Arquitetura da destruição

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Por IELA em 10 de dezembro de 2012

Arquitetura da destruição
O governo prevê construir pelo menos duas hidrelétricas até o fim da
década no Tapajós, atingindo em cheio um rincão de biodiversidade e beleza
Por Carlos Juliano Barros – Pública *

10.12.2012  – Quando decidiu encarar de carro os 3.338 quilômetros que separam o Rio de Janeiro do município de Itaituba, no oeste do Pará, o geólogo Juan Doblas –
especialista em imagens de satélite – nem imaginava que daria uma
contribuição e tanto à biologia da Amazônia. Enquanto dirigia pelo trecho
da BR 163 que atravessa o Parque Nacional do Jamanxim, uma das doze
unidades federais de conservação ambiental que protegem essa parte da
floresta alimentada pela bacia do rio Tapajós, ele se deparou com uma
macaca que, atordoada pelo barulho do automóvel, abandonou em plena estrada
o filhote que carregava.
Depois de deixar o pequeno animal em uma árvore, permitindo que ele fosse
resgatado pela mãe, Doblas resolveu filmar e tirar fotos do reencontro.
“Quando cheguei a Itaituba, mostrei as imagens para um amigo do Instituto
Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) especialista em
macacos”, conta o geólogo. A surpresa de ambos não poderia ser maior.
Tratava-se de uma espécie em perigo, típica do estado do Amazonas, mas que,
supõe-se, havia se deslocado para essa parte do Pará justamente por
encontrar na floresta intocada do Tapajós um verdadeiro refúgio. “Foi um
fato casual que mostrou dados completamente novos sobre a distribuição de
espécies em extinção na Amazônia”, explica Doblas, que trabalha com
geoprocessamento no Instituto Socioambiental (ISA), uma das principais
organizações ambientalistas do país.
O geólogo narra esse episódio justamente para ilustrar a incrível – mas, em
boa parte, desconhecida – biodiversidade que pode ser duramente golpeada
pela construção de um complexo de hidrelétricas nos rios Tapajós e no seu
afluente Jamanxim. O potencial levantado para essa bacia hidrográfica
localizada no oeste do Pará comporta até sete usinas capazes de produzir no
total cerca de 14 mil Megawatts (MW) – potência equivalente à da binacional
Itaipu.
De acordo com o Plano Decenal de Expansão de Energia 2021, documento
produzido pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE), vinculada ao
Ministério de Minas e Energia (MME), ao menos duas delas devem entrar em
funcionamento até o final desta década: São Luiz do Tapajós e Jatobá.
Se efetivamente sair do papel, o complexo hidrelétrico pode trazer impactos
ambientais inimagináveis para os 850 quilômetros de águas de tons azuis e
verdes do Tapajós, guarnecido por dezenas de reservas florestais e terras
indígenas. Sem sombra de dúvida, trata-se de uma das mais belas partes da
Amazônia. Tanto é assim que um dos destinos turísticos mais conhecidos da
floresta, as paradisíacas praias de Alter do Chão, ficam no município de
Santarém, na foz do rio.
Como nem poderia deixar de ser, a construção desse conjunto de
hidrelétricas não vai acarretar problemas apenas ao meio ambiente. Segundo
a Eletronorte, subsidiária da estatal Eletrobras responsável pelo
inventário das informações acerca das usinas do Tapajós, pelo menos 2,3 mil
pessoas de 32 comunidades ribeirinhas serão diretamente afetadas se os sete
empreendimentos forem levados a cabo. Outras 16 aldeias indígenas da etnia
munduruku também terão parte de seus territórios inundada pelos
reservatórios que serão formados pelas barragens.
Das usinas previstas no complexo hidrelétrico, duas delas – São Luiz do
Tapajós e Jatobá, ambas no rio Tapajós – já tiveram seu processo de
licenciamento ambiental iniciado no Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e
dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Por enquanto, o custo das duas é
estimado em R$ 23 bilhões, com verba carimbada pela segunda edição do
Programa de Aceleração do Crescimento (PAC 2).
São Luiz do Tapajós, a maior do complexo, com capacidade para 6.133 MW, é a
que está em fase mais adiantada. A obra mexe em um cenário tão delicado
que, mesmo antes de ser concluído seu Estudo de Impacto Ambiental/Relatório
de Impacto Ambiental (EIA/Rima), já vem provocando uma verdadeira batalha
nos tribunais. No último mês de novembro, a Justiça Federal suspendeu, em
primeira instância, o licenciamento da hidrelétrica por conta de uma ação
movida pelo Ministério Público Federal (MPF) de Santarém (PA).
“O pedido de suspensão se baseia em dois motivos. Em primeiro lugar, não
foi realizada uma avaliação ambiental integrada. É preciso analisar o
impacto conjunto de todas as usinas previstas para a bacia do Tapajós, e
não o de apenas uma delas isoladamente”, explica Fernando Antônio Oliveira
Júnior, procurador do MPF. “Além disso, não foi feita uma consulta prévia
às populações indígenas que vão ser afetadas pelos empreendimentos. Essa
consulta tem que ser anterior a qualquer tipo de autorização.”
O Tapajós é considerado a última grande fronteira energética da Amazônia.
Por enquanto, é o único dos quatro grandes afluentes da margem direita do
Amazonas que não foi represado para a produção de eletricidade em larga
escala. Na década de 1970, os militares barraram o rio Tocantins para fazer
a usina de Tucuruí, aquela que hoje é segunda maior hidrelétrica do Brasil
em funcionamento, atrás apenas de Itaipu. Com a chegada do ex-presidente
Luiz Inácio Lula da Silva ao Palácio do Planalto e a criação do PAC, foram
erguidas Jirau e Santo Antônio, no rio Madeira, além de Belo Monte, no
Xingu.
“Os governos de Lula e de Dilma Roussef estão decididos a transformar o
Brasil na terceira maior economia do mundo à custa da nossa floresta”,
critica o Padre Edilberto Silva, do Movimento Tapajós Vivo, fórum que reúne
diversas organizações de defesa do meio ambiente e dos direitos das
populações locais.
Por encomenda da ONG Conservação Internacional, Wilson Cabral, pesquisador
e professor do Instituto de Tecnologia de Aeronáutica (ITA), está
produzindo um estudo que calcula, na ponta do lápis, os reais custos
econômicos, sociais e ambientais envolvidos na construção das usinas do
Tapajós.
Em 2010, o professor produziu uma pesquisa semelhante sobre Belo Monte e
concluiu que o empreendimento tinha mais de 90% de chance de inviabilidade.
Segundo as complexas fórmulas matemáticas utilizadas pelo professor, o
valor do prejuízo variava em um intervalo de US$ 7 milhões a US$ 8 bilhões.
O novo estudo está em fase final e deve ser divulgado no começo de 2013.
Por essa razão, ele evita falar de valores. Mas, ao que tudo indica, o
Tapajós segue a mesma trilha de Belo Monte. “A análise está apontando
inviabilidade para todas as usinas e, consequentemente, para todo o
complexo”, afirma Cabral. “Não é preciso empreender hidrelétricas no
Tapajós para atender a demanda energética brasileira, desde que se invista
em outras fontes e também se trabalhe a eficiência do consumo da energia
que já é produzida.”
*Arquitetura da destruição*
Para acelerar o licenciamento das duas primeiras usinas do complexo, São
Luiz do Tapajós e Jatobá, o governo federal precisou recorrer a um
verdadeiro malabarismo legal. Em janeiro, a presidente Dilma Rousseff
editou a Medida Provisória 558, convertida em lei no mês de junho, pela
qual reduziu as áreas de cinco Unidades de Conservação (UCs) ambiental na
entorno do rio Tapajós.
Em uma canetada, 75 mil hectares de florestas intocadas – que podem ser
inundados com a formação dos lagos artificias das duas barragens – ficaram
sem proteção do dia para noite. O governo argumenta que, sem essa medida,
seria impossível iniciar o processo de licenciamento ambiental no Ibama.
À primeira vista, a área “desafetada”, como se diz tecnicamente, parece não
ser tão expressiva assim. Tanto é que o governo se defende das críticas
argumentando que, para a construção das usinas de São Luiz do Tapajós e
Jatobá, apenas 2% da dimensão total das reservas vão de fato para baixo
d’água. Mas, neste caso, vale o popular ditado de que tamanho não é
documento. “A parte que será afetada nas unidades de conservação é o
coração, a parte mais importante das reservas, justamente por conta da
proximidade com o rio”, explica Juan Doblas, do ISA.
A Medida Provisória posteriormente convertida em lei provocou uma celeuma
no ICMBio, responsável pela gestão das reservas ambientais do Brasil. Em
julho, técnicos do órgão federal lotados no escritório de Itaituba,
responsáveis por 12 unidades de conservação na bacia do Tapajós, lançaram
um manifesto público criticando duramente não só a decisão do governo
federal de reduzir a área de proteção ambiental, mas sobretudo a forma
atropelada com que ela foi tomada.
“Os registros feitos até o momento apontam altíssima biodiversidade, com
considerável taxa de endemismo e grande representatividade de espécies
ameaçadas de extinção”, diz o documento. “Do ponto de vista da legalidade,
denunciamos a desafetação das unidades realizada primeiramente por medida
provisória com objetivo único de dar celeridade ao processo em detrimento
da realização de estudos comprometidos com a destinação original dessas
áreas: proteção e conservação da biodiversidade.”
O MPF também está questionando judicialmente a via legal utilizada pelo
governo federal para reduzir a área das UCs na bacia do Tapajós, através de
uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI). “O principal aspecto é
formal”, explica o procurador Felipe Bogado. “A área de uma Unidade de
Conservação não pode ser reduzida por meio de uma lei complementar que
substitui uma Medida Provisória, como fez o governo”, acrescenta. Até o
momento, o Supremo Tribunal Federal (STF), que analisa o processo, não se
pronunciou sobre o caso.
Tragédia anunciada, o simples anúncio da redução das áreas de preservação
disparou automaticamente o gatilho da degradação dessa parte da Amazônia.
“A região aqui é rica em minérios. Com a desafetação das áreas, está
ocorrendo um aumento de pressão sobre a floresta, principalmente nessas
áreas que não fazem mais parte das unidades de conservação”, explica Nilton
Rascon, analista ambiental do ICMBio.
O crescimento da atividade de garimpos irregulares é perceptível a qualquer
um que viaje pelo rio. No trecho de 400 quilômetros do Tapajós entre os
municípios de Itaituba e Jacareacanga havia, até janeiro, cinco barcaças –
chamadas de “escariantes” – fazendo garimpo diretamente no leito do rio.
Com a desafetação das unidades de conservação, esse número pulou para
impressionantes 35, em poucos meses deste ano. “O ICMBio precisa de mais
fiscais na região. Ainda vêm muitos analistas de fora, de outros estados,
para ajudar”, reconhece Rascon.
*Impactos ambientais*
A entrada do Parque Nacional (Parna) da Amazônia, primeira unidade de
conservação desse tipo criada no país, em 1974, fica a pouco mais de uma
hora de carro do centro de Itaituba. Para chegar até lá, é preciso encarar
trechos de asfalto e de terra batida da BR 230, mais conhecida como
Transamazônica, um dos projetos emblemáticos da ditadura militar. Se a
barragem de São Luiz do Tapajós for construída, uma fração de 112
quilômetros da rodovia que corta o parque também será inundada. Até o
momento, porém, nenhum representante do governo federal ou da Eletrobras
veio a público para explicar como será feita a cirurgia para reconectar as
pontas soltas da estrada.
E não é apenas uma parte da BR 230 que será alagada no Parna da Amazônia.
Do principal mirante da reserva, aberto à visitação para turistas, é
possível observar corredeiras formadas por um aglomerado de rochas
encravado no meio do Tapajós. Digno de um cartão postal, esse trecho do rio
não é protegido pelos órgãos ambientais apenas pelos seus atributos
estéticos. Várias espécies de peixes  aproveitam as corredeiras para fazer
o épico ritual da piracema – a subida do rio necessária à sua reprodução.
Com a barragem de São Luiz do Tapajós, as corredeiras vão literalmente
sumir do mapa, e a piracema será inviabilizada, trazendo consequências
imprevisíveis. “A solução técnica é construir um tipo de escada para ajudar
os peixes a subir o rio”, explica o biólogo Javan Lopes, servidor do
ICMBio. “Porém, o ambiente da corredeira tem muito mais oxigênio. Então,
mesmo que se construa a escada, os peixes podem morrer porque o oxigênio
disponível na água diminui”, completa. Os técnicos do ICMBio não descartam
uma verdadeira hecatombe ambiental: 90% das 400 espécies de peixes
catalogadas no parque podem não resistir.
Nos últimos quatro anos, os gestores do Parna da Amazônia trabalharam
continuamente no plano de manejo da unidade de conservação – levantamento
meticuloso da fauna e da flora que, com a redução da área da reserva, será
jogado literalmente na lata do lixo. Até o presente momento, foram
registradas 390 espécies diferentes de aves. Entre os mamíferos
catalogados, há animais que correm sério risco de extinção, como a
onça-pintada, a onça-vermelha, o tamanduá-bandeira e a jaguatirica.
O destino de tamanha diversidade natural é objeto do EIA/Rima da usina de
São Luiz do Tapajós, ainda em andamento. A estimativa inicial era que o
estudo ficasse pronto até o final deste ano, já que o governo tinha planos
de licitar a construção da hidrelétrica em 2013. Quando for finalizado, o
documento vai possibilitar análises científicas mais refinadas sobre os
impactos ambientais que podem de fato ocorrer. Mas o cronograma
dificilmente será cumprido – ainda mais com a decisão judicial de novembro
que suspendeu o licenciamento até que se realize uma avaliação integrada
dos impactos gerados por todas as sete usinas previstas para os rios
Tapajós e Jamanxim.
Não há dúvidas de que o complexo hidrelétrico vai reconfigurar a compleição
natural do oeste do Pará. “Foram necessários milhares de anos para a
criação de um equilíbrio ecológico entre as espécies, como a tartaruga e o
tucunaré, que depende da subida e da descida dos rios”, explica Juan
Doblas. “Essas barragens vão alterar completamente os ciclos de cheia e de
seca não só dos rios Tapajós e Jamanxim, mas de toda a rede hidrográfica
associada.”
Para entender como o fluxo do Tapajós se altera ao longo do ano, por
exemplo, basta ir a Itaituba em duas épocas diferentes. A orla da cidade
chega a alagar no período de cheia, que coincide com as chuvas do primeiro
trimestre. Porém, na época da seca, intensificada a partir do segundo
semestre, aparecem muitas praias nas margens do rio.
Os impactos ambientais provocados pelas usinas do Tapajós podem ser mais
graves até do que os gerados por Belo Monte – isso, claro, se o Estado
brasileiro mantiver sua palavra e não construir novas usinas no Xingu. Uma
breve comparação fornece pistas do que está por vir: o lago artificial a
ser formado com a barragem do rio Xingu no município de Altamira terá 510
quilômetros quadrados. Só na barragem de São Luiz do Tapajós, serão
alagados 722 quilômetros quadrados – metade da área do município de São
Paulo.
No Xingu, o trecho do rio a ser barrado terá 200 quilômetros de
comprimento. No Tapajós, será duas vezes e meia maior. O Jamanxim, com três
usinas, vai se converter numa sucessão de lagoas.
Outra pulga atrás da orelha dos ambientalistas diz respeito à relação entre
o barrento rio Amazonas e o esverdeado Tapajós, que se encontram – mas não
se misturam – no município de Santarém. A preocupação é com uma possível
invasão das águas do Amazonas sobre as do Tapajós, o que significaria a
ruína turística do balneário de Alter do Chão, por exemplo. “Se eu falar
isso para um engenheiro da Eletrobras, ele vai rir na minha cara”, afirma
Doblas. “Mas eu tenho questionado doutores em hidrologia, e eles me
disseram que essa possibilidade tem que ser estudada. É preciso fazer um
modelo no computador. É provável que isso aconteça? Acho que não. É
possível? Sim.”
É justamente para dirimir essas dúvidas – e separar o que é mera
especulação do que é risco de fato – que o Ministério Público Federal
acionou a Justiça para cobrar a realização de uma Avaliação Ambiental
Integrada (AAI) e de uma Avaliação Ambiental Estratégica (AAE) dos impactos
gerados por todas as usinas previstas no complexo hidrelétrico, e não
apenas por São Luiz do Tapajós. “É uma postura preventiva do MPF. Queremos
apenas que os marcos legais sejam respeitados”, explica o procurador
Fernando Antônio Oliveira Júnior.
Por meio de nota emitida por sua assessoria de imprensa, a Eletrobras –
empreendedora das usinas de São Luiz do Tapajós e de Jatobá – sustenta que
a avaliação ambiental integrada “não é exigência legal para emissão das
licenças ambientais”. A nota afirma também que a metodologia da AAI foi
construída após a conclusão dos estudos do inventário do potencial
hidrelétrico de toda a bacia do Tapajós.
Em outras palavras, a estatal argumenta que não havia obrigatoriedade de
proceder a essa avaliação integrada na época em que fez o inventário das
usinas. Por fim, a nota informa que a empresa está contratando uma equipe
para fazer a AAI, que fará parte “do conjunto de estudos para a viabilidade
de São Luiz do Tapajós e Jatobá, o que demonstra o comprometimento dos
mesmos com as melhores práticas ambientais”.
A Aneel também se manifestou por meio de nota emitida pela assessoria de
imprensa. A agência defende a construção das usinas no Tapajós, com a
justificativa de que a hidroeletricidade tem “muito menos impacto
ambiental” que outra fontes térmicas à base de combustíveis fósseis.
O documento afirma ainda que “o licenciamento é o principal movimento para
a resolução de conflitos socioambientais, tendo em vista que a elaboração
do EIA/Rima e a realização de audiências públicas possibilitam o
estabelecimento de condicionantes pelos órgãos ambientais”.
*Energia para quem*
Nos hotéis e restaurantes do centro de Itaituba ou nos trechos mais
recônditos da floresta do entorno do Tapajós, é possível dar de cara com
caminhonetes e técnicos de camisa polo azul a serviço da CNEC Engenharia. A
empresa é a responsável pela realização dos estudos de viabilidade e do
projeto técnico da hidrelétrica de São Luiz do Tapajós, mas também operou
nas usinas de Belo Monte, no rio Xingu, e de Estreito, no rio Tocantins,
além de diversos outros empreendimentos de porte na Amazônia.
Até janeiro de 2010, a CNEC – fundada em 1959 por engenheiros da Escola
Politécnica da Universidade de São Paulo (USP) – constituía o braço
intelectual, por assim dizer, de uma das maiores empreiteiras do país: a
Camargo Corrêa, responsável por algumas das obras de envergadura do PAC,
como a hidrelétrica de Jirau, no rio Madeira. Quase três anos atrás, porém,
a empresa foi vendida por R$ 170 milhões para o grupo australiano
WorleyParsons, uma das mais conhecidas consultorias de energia em todo o
mundo.
Foram justamente os engenheiros da CNEC que, na década de 1980, mapearam os
projetos de construção de usinas no rio Tapajós – e em quase todos os
afluentes do rio Amazonas. Era ela quem municiava de informações e
pareceres técnicos a Eletronorte, subsidiária da estatal Eletrobras
responsável pelo aproveitamento do potencial hidrelétrico da região norte
do país, desde o regime militar. “Naquela época, eu brincava dizendo que a
Eletronorte era um escritório da Camargo Corrêa”, conta Arsênio Oswaldo
Sevá Filho, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e
grande conhecedor do sistema elétrico nacional.
A CNEC é o elo técnico do “cartel barrageiro” que, segundo o professor
Sevá, se instalou no Brasil na época da ditadura e, desde então, não mais
arredou pé do país, pressionando os governos brasileiros ao longo do tempo
para a construção de grandes hidrelétricas. Nesse clube restritíssimo,
figuram as principais empreiteiras brasileiras, que rateiam entre si o bolo
das obras de construção civil – elas são apelidadas de “cinco irmãs” e
congregam Camargo Corrêa, Odebrecht, Andrade Gutierrez, OAS e Queiroz
Galvão.
Também participam do grupo as corporações internacionais que fornecem
equipamentos de alta tecnologia para as usinas, como a alemã Siemens e a
japonesa Toshiba. Fecham a sociedade as grandes mineradoras que não apenas
consomem – mas também vendem – a energia produzida nos rios amazônicos,
como a Vale e norteamericana Alcoa, por exemplo.
A verdade é que o Brasil é dos poucos países do mundo – ao lado da China,
da Índia, da Turquia e do Congo – onde ainda existe espaço para tirar do
papel projetos bilionários de hidrelétricas. Em tempos de crise econômica
global, construir barragens nos rios da Amazônia é a verdadeira galinha dos
ovos de ouro para players do capitalismo que atravessam sérias dificuldades
para fechar grandes negócios.
“Estamos oferecendo à indústria internacional a continuidade dos negócios a
longo prazo e a custo baixo”, analisa Sevá. “O governo brasileiro libera as
licenças, mesmo que se destruam o meio ambiente e a vida das populações
locais. Depois, garante o custo baixo da mão-de-obra e, principalmente, do
dinheiro necessário às obras, porque coloca as empresas estatais, os fundos
de pensão e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES)
para alavancar o negócio.”
A usina de Belo Monte é o exemplo mais bem acabado desse fenômeno. Só o
grupo Eletrobras e os fundos de pensão dos funcionários da Petrobras
(Petros) e da Caixa Econômica Federal (Funcef) respondem, atualmente, por
70% da composição acionária do consórcio construtor da barragem. Em outras
palavras, os riscos e os altíssimos investimentos inerentes à obra fizeram
a iniciativa privada passar longe.
Para bancar o prejuízo, o governo tem aberto as torneiras do BNDES. Na
última semana de novembro de 2012, o banco anunciou o maior financiamento
de toda a sua história para a conclusão das obras da usina: R$ 22,5 bilhões
a serem pagos em três décadas. Antes dessa operação, porém, o BNDES já
havia feito empréstimos-ponte (de curto prazo) de R$ 2,9 bilhões para o
consórcio construtor da hidrelétrica.
“O custo de produzir hidrelétrica na Amazônia é muito alto e incerto”,
afirma Wilson Cabral, do ITA. “Todos os projetos geraram aditivos
contratuais da ordem de pelo menos 25%”, alerta. No caso do Tapajós, a
engenharia financeira para viabilizar a obra ainda não está traçada – até
porque os R$ 23 bilhões previstos para as usinas de São Luiz do Tapajós e
Jatobá no orçamento do PAC 2 não passam de estimativas. Mas, assim como
aconteceu nas usinas dos rios Madeira e Xingu, não há dúvidas de que o
tripé formado por Eletrobras, fundos de pensão e BNDES deve entrar na
jogada.
Tampouco está decidido o futuro da eletricidade a ser gerada. Na página 80
do Plano Decenal de Expansão de Energia 2020, é possível ler com todas as
letras que ela servirá integralmente para alimentar a demanda das regiões
Sudeste e Centro-Oeste. Porém, não é demais lembrar que o Pará concentra a
maior província mineral do planeta. Além do ouro, que hoje é explorado em
mais de 2 mil garimpos ao longo do rio Tapajós, as novas usinas devem
consolidar o estado como um grande polo de alumínio.
Atualmente, existem quatro grandes projetos de extração e beneficiamento de
bauxita no Pará, envolvendo gigantes como as brasileiras Vale e Votorantim,
a norteamericana Alcoa e a norueguesa Hydro. Uma das principais reclamações
dessas indústrias – chamadas de eletrointensivas, por consumirem
eletricidade em larga escala – é o preço da energia. O complexo
hidrelétrico do Tapajós é uma dos caminhos para baratear os custos. “Os
grupos que estão por trás, apoiando inclusive financeiramente a construção
das usinas, são empresas de exploração de commodities minerais. Então,
esses empreendimentos não vão equalizar a demanda de energia para o
Sudeste. Eles são para empresas que estão se assentando na região Norte”,
finaliza Cabral.

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