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Egito: uma ditadura às portas da morte

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Por IELA em 31 de janeiro de 2011

Egito: uma ditadura às portas da morte
Por Robert Fisk – The Independent
Os tanques egípcios, os manifestantes em delírio sentados sobre eles, as
bandeiras, os 40 mil manifestantes lacrimejando e gritando vivas na Praça da
Liberdade e rezando à volta dos tanques, um membro da Fraternidade Muçulmana
sentado entre os ocupantes do tanque. Pode-se talvez comparar à libertação
de Bucareste? Subi eu também sobre um tanque de combate, e só conseguia
pensar naqueles maravilhosos filmes da libertação de Paris. A apenas algumas
centenas de metros dali, os guardas da segurança de Mubarak, nos uniformes
pretos, ainda atiravam contra manifestantes perto do ministério do Interior.
Foi celebração selvagem de vitória histórica, os tanques de Mubarak
libertando a capital de sua própria ditadura.
No mundo de pantomima de Mubarak – e de Barack Obama e Hillary Clinton em
Washington –, o homem que ainda se diz presidente do Egito deu posse a um
vice-presidente cuja escolha não poderia ter sido pior, na tentativa de
aplacar a fúria dos manifestantes – Omar Suleiman, chefe-negociador do Egito
com Israel e principal agente da inteligência egípcia, 75 anos de idade e
muitos de contatos com Telavive e Jerusalém, além de quatro ataques
cardíacos. Não se sabe de que modo esse velho *apparatchik* doente
conseguiria enfrentar a fúria e a alegria de 80 milhões de egípcios que se
vão livrando de Mubarak. Quando falei a alguns manifestantes ao meu lado
sobre o tanque, da nomeação e posse de Suleiman, houve gargalhadas.
Os soldados que conduzem os tanques, em uniforme de combate, sorridentes e
às vezes aplaudindo os passantes, não fizeram qualquer esforço para apagar
das laterais dos tanques os *graffiti* ali pintados com tinta *spray*. “Fora
Mubarak! Caia fora, Mubarak!” e “Mubarak, seu governo acabou” aparecem
grafitados em praticamente todos os tanques que se veem pelas ruas do Cairo.
Sobre um dos tanques que circulavam pela Praça da Liberdade, vi um alto
dirigente da Fraternidade Muçulmana, Mohamed Beltagi. Antes, andei ao lado
de um comboio de tanques próximo de Garden City, subúrbio do Cairo, onde as
multidões subiram aos tanques para oferecer laranjas aos soldados,
aplaudindo-os como patriotas egípcios. A nomeação ensandecida e sem sentido
de um vice-presidente [o primeiro, em 30 anos, e nomeação que significa que
Mubarak desistiu de nomear o filho para substituí-lo no poder (NTs)] e a
formação de um ‘novo’ Gabinete sem poder algum, constituído só de velhos
conhecidos dos egípcios, evidenciam que as ruas do Cairo viram e veem o que
nem os estrategistas e políticos dos EUA e da União Europeia souberam ver:
que o tempo de Mubarak acabou.
As frágeis ameaças de Mubarak de que empregará repressão violenta em nome do
bem estar dos egípcios  –  quando já se sabe que a sua própria polícia e
suas milícias são responsáveis pelos ataques mais violentos dos últimos
cinco dias – só geraram ainda mais fúria entre os manifestantes, vítimas de
30 anos de ditadura várias vezes muito violenta. Crescem as suspeitas de que
os piores ataques da repressão foram executados por milícias não
uniformizadas – inclusive o assassinato de 11 homens numa vila do interior
do país nas últimas 24 horas –, tentativa de dividir o movimento e criar
suspeitas contra as intenções democratizantes das manifestações contra o
governo de Mubarak. A destruição dos centros de comunicações por grupos de
homens mascarados – que se suspeita que tenha sido ordenada por alguma
agência da segurança de Mubarak – também parece ter sido obra das milícias
não uniformizadas que espancaram manifestantes.
Mas o incêndio de postos policiais no Cairo, Alexandria, Suez e outras
cidades não foram obra daquelas milícias. No final da 6ª-feira, a 40 milhas
do Cairo, na estrada para Alexandria, havia grandes grupos de jovens em
torno de fogueiras acesas no meio da estrada e, quando os carros paravam,
eram assaltados; os assaltantes exigiam dólares, sempre muitos, em dinheiro.
Ontem pela manhã, homens armados roubavam carros, de dentro dos quais
arrancavam motoristas e passageiros, no centro do Cairo.
Infinitamente mais terrível foi o vandalismo contra o Museu Nacional do
Egito. Depois que a polícia abandonou o serviço de segurança do museu, houve
invasão de saqueadores e vândalos, que roubaram ou destruíram peças de 4 mil
anos, múmias e peças de madeira esculpida de valor inestimável – barcos,
esculpidos com todos os detalhes e a tripulação, miniaturas magníficas,
feitas para acompanhar os faraós na viagem pós-morte. Vitrines que protegiam
trajes milenares foram quebradas, os guardas pintados de preto arrancados e
depredados. Outra vez, é preciso registrar que há boatos de que os próprios
policiais destruíram o museu, antes de fugir na 6ª-feira à noite. Lembrança
fantasmagórica do museu de Bagdá em 2003. Bagdá foi pior, a destruição foi
mais total, mas mesmo assim foi terrível o desastre do museu do Cairo.
Em minha jornada noturna da Cidade 6 de Outubro até a capital, tive de
diminuir a velocidade várias vezes, porque a estrada está cheia de restos de
veículos queimados. Havia destroços e vidros quebrados pela estrada, e
muitos policiais armados, com rifles apontados para os faróis do meu carro.
Vi um jipe semidestruído. Os restos do equipamento da polícia antitumulto
que os manifestantes expulsaram da cidade do Cairo na 6ª-feira. Os mesmos
manifestantes que, ontem à noite, formavam círculo gigantesco em torno da
Praça da Liberdade para rezar. Gritos de “Allah Alakbar” trovejavam pela
cidade no ar da noite.
Há também quem clame por vingança. Uma equipe de jornalistas da rede
al-Jazeera encontrou 23 cadáveres em Alexandria, aparentemente assassinados
pela polícia. Vários tinham os rostos horrivelmente mutilados. Outros onze
cadáveres foram encontrados no Cairo, cercados por parentes que gritavam por
vingança contra a polícia.
No momento, Cairo salta em minutos da alegria para a mais terrível fúria.
Ontem pela manhã, andei pela ponte do rio Nilo e vi as ruínas do prédio de
15 andares onde funcionava a sede do partido de Mubarak, que foi incendiado.
À frente, um imenso cartaz pregava os benefícios que o partido trouxe ao
Egito – imagens de estudantes formados bem sucedidos, médicos e pleno
emprego, promessas que o governo de Mubarak sempre repetiu e jamais cumpriu
em 30 anos – emoldurados pela fuligem, semiqueimados, pendentes das janelas
enegrecidas do prédio. Milhares de egípcios andavam pela ponte e pelos
acessos laterais para fotografar o prédio ainda fumegante – e muitos
saqueadores, a maioria velhos, que tiravam de lá mesas e cadeiras.
No instante em que uma equipe de televisão escocesa preparava-se para filmar
as mesmas cenas, foi cercada por várias pessoas que disseram que não tinham
o direito de filmar os incêndios, que os egípcios são povo orgulhoso que não
roubaria nem saquearia. O assunto foi discutido várias vezes ao longo do
dia: se a imprensa teria ou não o direito de divulgar imagens sobre essa
“libertação”, que veiculassem ideias menos dignas do movimento. Mesmo assim,
os manifestantes mantinham-se cordiais e – apesar das declarações
acovardadas de Obama, na 6ª-feira à noite – não se viu nenhum, nem qualquer
mínimo sinal de hostilidade contra os EUA. “Tudo que queremos, tudo,
exclusivamente, é que Mubarak vá-se daqui, que haja eleições que nos
devolvam a liberdade e a honra” – disse-me uma psiquiatra de 30 anos. Por
trás dela, multidões de jovens limpavam o leito da rua, removendo restos de
veículos e barreiras postas nas intersecções e esquinas – releitura irônica
do conhecido ditado egípcio, de que os egípcios nunca varrerão as próprias
ruas.
A alegação de Mubarak, de que as atuais demonstrações e atos de delinqüência
– a combinação foi tema do discurso em que Mubarak declarou que não deixaria
o Egito – seriam parte de um “plano sinistro” é evidentemente o núcleo de
seu argumento, na tentativa de não perder o reconhecimento mundial.
De fato, a própria resposta de Obama – sobre a necessidade de reformas e o
fim da violência – foi cópia exata de todas as mentiras que Mubarak sempre
usou para defender seu governo durante 30 anos. Os egípcios riram de Obama –
inclusive no Cairo, depois de eleito – quando exigiu que os árabes
abraçassem a liberdade e a democracia. Mas até essas aspirações sumiram
completamente quando, na 6ª-feira, Obama assegurou seu desconfortável e
incomodado apoio ao presidente egípcio. O problema é o de sempre: as linhas
do poder e as linhas da moralidade em Washington jamais convergem quando os
presidentes dos EUA têm de lidar com o Oriente Médio. A liderança moral dos
EUA cessa de existir quando há confronto declarado entre o mundo árabe e
Israel.
E o exército egípcio, desnecessário lembrar, é parte da equação. Recebe de
Washington mais de 1,3 bilhão de dólares de auxílio anual. O comandante
desse exército, general Tantawi – que casualmente estava em Washington,
quando a polícia tentava esmagar os manifestantes – sempre foi muito amigo,
pessoal, íntimo, de Mubarak. Não é bom sinal, parece, pelo menos no futuro
imediato.
Assim, a “libertação” do Cairo – onde houve notícias, ontem à noite, de
saques no hospital Qasr al-Aini – ainda tem a andar, até a consumação. O fim
pode ser claro. A tragédia ainda não acabou.

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