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Os três espelhos

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Por IELA em 19 de junho de 2020

Os três espelhos

“A treva enorme fitando, fiquei perdido receando,
Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.
Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,
E a única palavra dita foi um nome cheio de ais –
Eu o disse, o nome dela, e o eco disse os meus ais,
Isto só e nada mais.”
Edgar Allan Poe
 
Por três vezes o espelho nos mostrou, mas seguimos fazendo a mesma pergunta que poetas e escritores ilustres já fizeram: quem é esse estranho que me olha desde o espelho? Não se deve culpar o espelho pelas inversões que ele nos mostra. Nos espelhos, assim como na religião e na ideologia, o reflexo só pode ser construído a partir daquilo que no real se apresenta. Como já disse Marx, a religião e o Estado são uma consciência invertida porque são a consciência de um mundo invertido.
 
Em 2016 o espelho mostrou, diante de um pais estarrecido, o Congresso cassando o mandato da presidente eleita em 2014 nos marcos da normalidade democrática – isto é, em uma eleição marcada pelo financiamento privado de campanha (naquele ano, ainda financiamento empresarial), com distribuição desigual de recursos e impedimentos ao acesso ao tempo de televisão, construído sobre promessas e mentiras, com o descarado uso da máquina governamental e a distribuição de cargos, favores e recursos. Vimos no espelho os deputados envoltos na bandeira nacional pronunciarem irracionalidades e preconceitos, elogiar torturadores e carrascos – tudo embrulhado grotescamente em saudações à família, à moral e aos bons costumes.
 
Ali estava o poder judiciário, na figura do presidente do STF (lá colocado por aqueles que seriam derrubados), garantindo que se cometeria o casuísmo e a ilegalidade na forma correta do rito legal. Ali estavam os poderosos meios de comunicação construindo narrativas sob a ditadura editorial que apenas faz aquilo que seus proprietários ordenam, filtrando a voz das ruas raivosas para que digam aquilo que a pauta determinava calmamente.
 
Aquilo que aparecia na imagem grotesca foi, entretanto, pacientemente construído. Foram anos de pactos e conciliações, acordos e recuos: recuos para conciliar e conciliações para recuar ainda mais. Agora as vítimas oravam no altar do Estado democrático de direito que lhes respondia, como toda divindade que sai dos seres humanos e depois volta de forma estranhada e hostil, exigindo o sacrifício de seus criadores para salvar a incorpórea criatura.
 
Em 2018 o espelho mais uma vez nos mostrou um país fraturado, violento, preconceituoso, irracional. Hordas marchavam pelas ruas com as camisas que um dia foram de seleções de artistas, que construíram sonhos e poemas com os pés, mas agora serviam à barbárie e ao passado sangrento. Ali, também, estavam os juízes, tramando ilegalidades, negando habeas corpus em nome da liberdade e rasgando a Constituição enquanto a citavam – tudo à maneira de um fluir de doutos discursos infindáveis, fundamentados em juristas famosos que citaram juristas famosos, na melhor tradição da dogmática jurídica: conjurando a metafísica de uma justiça inexistente, como sacerdotes egípcios que na sagrada pirâmide kelseniana, oficiam a morte como fosse o portal da vida eterna.
 
Ali, também, as televisões exerciam seu ofício. Matérias especiais, reportagens, debates de perguntas e respostas vazias, assim como a cadeira de que já dizia o que pensava de debates. Confundindo a nobre profissão de jornalistas com a da mera leitura de teleprompter, de especialistas em análise política cuja única especialidade é parasitar bastidores, como pulgas no carpete do poder em busca de migalhas de mentiras com que esperam construir o pão da verdade que apresentarão.
 
Foi ali que vi as pulgas do carpete do poder central, vivendo no centro do Império nos EUA, perderem a compostura festejando aos gritos a vitória do fascismo diante dos sorrisos débeis dos âncoras de um navio encalhado na praia seca esperando a maré voltar.
 
O deus democrático e de direito ungiria de legitimidade o vencedor, oriundo dos esgotos de um passado grotesco e alimentado pelo ressentimento de um presente incapaz de apresentar um futuro. O jogo de espelhos produziria mentiras pelas mãos digitais de milhares de robôs tecendo os fios de pulsos construindo realidade paralelas. Mas quem é o espelho para dizer de realidades construídas que se impõem ao real, sufocando-o e substituindo-o pela mentira? Alice, raivosa, sentencia que não pode ser real uma lebre tomando chá à mesa do chapeleiro – justo ela, uma menina que cai pelo buraco atrás de coelhos escravos de relógios, atravessa espelhos e divide o narguilé com lagartas.
 
Agora, também, vemos juízes desconcertados escondidos sob suas capas escuras como as suas almas vendidas, temerosos da vingança dos fantasmas que ajudaram a conjurar. Apresentadores apresentando suas desculpas, analistas analisando aquilo que suas análises ocultaram. Âncoras atordoados procurando no teleprompter o que dizer, mas um funcionário terceirizado digitou, como vingança, um poema de Edgar Alan Poe.
 
De nada adianta renegar o espelho, como o bêbado que tenta em vão assentar o cabelo e lavar a noite insone que carrega nas lágrimas de seus olhos injetados. O país segue olhando assustado para o espelho e seu reflexo distorcido, não reconhece as cicatrizes e as rugas que colecionou e culpa a imagem.
 
Enquanto isso, aqui do lado de fora do espelho, segue a macabra construção. Feitores fazem estalar seus chicotes sobre os ombros de milhares de escravos sem direitos e aposentadoria, que arrastam os enormes blocos de pedra em suas bicicletas enquanto seus deuses de barro, aqueles nos quais haviam exilado sua força coletiva, se transformam em poeira impotente. As paredes continuam se erguendo cimentadas por corpos de mulheres assassinadas, de índios queimados, crianças violadas e mortas por balas perdidas, meninos e meninas que o amor e o sexo indefinido assombram e precisaram ser purificadas e espancadas pela sagrada ira vingativa do Senhor, de multidões de pessoas invisíveis e cinzas que perambulam pelas ruas, dormem sob as pontes e se aglomeram na praça no escuro de uma noite sem fim.
 
Agora o espelho nos mostra pela terceira vez o país. Ao fundo, a enorme construção maligna toma suas formas quase finais. As paredes que cobrem os alicerces de ossos são naturalmente negras: forradas com a pele de ancestrais guerreiros, matéria prima barata do genocídio diário e milenar. Suas torres, como minaretes, desafiam o céu de um cinza chumbo e agourento.
 
No chão se vê pentagramas e rabiscos, mapas e planos, um planisfério desenhado com giz de cera e uma ampulheta quebrada. Imagens de santos aos pedaços, animais mortos e dependurados ao lado de esqueletos humanos e árvores calcinadas. Pela janela ao fundo vemos incêndios e numerosos exércitos que marcham. Os estandartes que decoram as paredes trazem símbolos que lembram uma conhecida marca roubada da tradição hinduísta, além de frases em runas, sânscrito e hebraico. A bíblia sagrada descansa sobre a mesa ao lado de um saco de moedas com um punhal de prata enterrado em sua capa de couro de ovelha.
 
No centro da imagem, Belzebu, cercado por asseclas insanos, ri.
 
[*] Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas. Na TV Boitempo , apresenta o Café Bolchevique, um encontro mensal para discutir conceitos-chave da tradição marxista a partir de reflexões sobre a conjuntura.
 
O original encontra-se em pcb.org.br/portal2/25689/os-tres-espelhos
 

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