Início|Brasil|O relatório do Banco Mundial e o futuro do Brasil

O relatório do Banco Mundial e o futuro do Brasil

-

Por IELA em 06 de janeiro de 2018

O relatório do Banco Mundial e o futuro do Brasil

Recentemente o Banco Mundial divulgou relatório encomendado pelo governo brasileiro no qual analisa as “medidas necessárias” para uma maior eficiência e equidade do gasto público no país. O documento, com o título ironicamente nomeado de “Um Ajuste Justo”, ainda que tenha caráter ideológico claro, traz importantes indicações sobre quais medidas esperar da burguesia brasileira nos próximos anos.
Assumindo o teto dos gastos públicos adotado em dezembro de 2016 como lei pétrea, o relatório calcula as medidas necessárias para efetivamente desempenhar este corte. Segundo o Banco Mundial, sua implementação exigiria “a redução dos gastos em cerca de 0,6% do PIB ao ano em relação à tendência atual durante a próxima década”.
Dentre as medidas elencadas, que atingem áreas como seguridade social, saúde, educação, gestão de pessoas, etc., apontamos aqui algumas das mais perversas:

Quanto à previdência o documento sugere desvincular as aposentadorias do salário mínimo. Ou seja, os aposentados passariam a receber valor inferior ao salário mínimo estipulado para os trabalhadores da ativa. Atualmente isso significaria receber menos do que R$ 954,00. O documento sugere ainda transformar a aposentadoria rural em um benefício social como o bolsa família, e chega ao absurdo de, para justificar essa medida, comparar as remunerações médias do bolsa família, um programa assistencial, complementar, com as da aposentadoria rural.
Para a educação as recomendações também são drásticas: acabar com a gratuidade das universidades públicas, extinguir a vinculação constitucional dos gastos em educação a 25% das receitas dos municípios, aumentar a quantidade de estudantes por sala de aula, e diminuir o número de escolas públicas.
Na saúde, as medidas apontadas foram: fechamento de “pequenos hospitais”, o que supostamente geraria uma economia de escala, já que mais pacientes seriam atendidos em hospitais maiores, e o fim do abatimento de despesas com saúde do Imposto de Renda de Pessoa Física.
Na assistência social, dentre outras medidas, o documento propõe que benefícios sociais, como aposentadoria rural, seguro-desemprego, bolsas família, etc., tenham limitação de valor por família. Ou seja, uma mesma família que atinja certo limite no acumulado desses benefícios, como bolsa família e a aposentadoria rural, não teria direito a receber outro, como o seguro desemprego, por exemplo.
Para gestão de pessoas, a toada é a mesma, e o relatório propõe acabar com as diferenças entre os salários do setor público e privado, obviamente sem elevar os salários do setor privado, mas congelando os salários do setor público de maneira a que eles sejam corroídos pela inflação.

Para defender que o ajuste é justo, o Banco Mundial afirma que, supostamente, existiriam benefícios sociais no Brasil que são disfrutados por uma parcela privilegiada da população. Quando trata da necessidade de cobrar mensalidades de universidades públicas, por exemplo, o documento afirma que “somente 20% dos estudantes fazem parte dos 40% mais pobres da população, ao passo que 65% integram o grupo dos 40% mais ricos”. Acontece que essas porcentagens pouco podem dizer em se tratando da realidade brasileira, marcada pela superexploração da força de trabalho e péssimas condições de vida.
Menos de duas semanas após o lançamento do documento do Banco Mundial, o IBGE divulgou estatísticas da PNAD Contínua em que afirma que em 2016, metade dos trabalhadores brasileiros recebia renda em média 15% abaixo de um salário mínimo. Já a renda média mensal dos 5% mais pobres era de apenas R$ 47,00. No Norte e Nordeste a situação era ainda pior: R$ 38,00 e R$ 33,00, respectivamente. Como a taxa de desemprego subiu de 11,5% em 2016 para 13,7% em 2017, é bem provável que esse quadro tenha se agravado ainda mais na atualidade. Aliás, ainda segundo dados do IBGE, 79% da população recebe até três salários mínimos. Portanto, essa porcentagem de jovens que tem acesso à universidade pública não é efetivamente tão mais rica que o resto da população como o relatório faz parecer. O mesmo vale para outros casos, como o da aposentadoria rural, dos salários dos servidores públicos, etc.
Essa ideologia do privilégio em um país de trabalhadores superexplorados, nada mais é do que uma amostra da impotência do liberalismo, seja de direita ou de esquerda, diante das desigualdades sociais criadas pelo capitalismo. Alimentando-se de pressupostos individualistas e atomistas, a democracia formal, essa que temos desde o fim das ditaduras militares na América Latina, reconhece a igualdade perante as leis e a igualdade de direitos, mas não pode assumir a igualdade social, pois esta vai contra a concorrência social.
Nas palavras de Jaime Osorio:
“Em sua concepção liberal [de democracia], a diferenciação social não somente é inerente à natureza humana, mas é também um princípio básico que permite as sociedades se desenvolverem. Sem concorrência não haveria progresso. Entre a liberdade e a igualdade, a democracia procedimental privilegia a primeira, tendo como base a liberdade econômica e a propriedade privada. Somente se pode buscar a igualdade a partir da liberdade. Disso deriva o rechaço à ingerência do Estado na economia, que colocaria limites à liberdade econômica e ao desfrute dos bens que ela propicia. Sua fórmula estatal aproxima assim à ideia de Estado mínimo em relação às funções estatais, manifestando as raízes liberais que assumem.” (Osorio, p. 68)

Acontece que essa ideia de Estado mínimo não é tão mínima assim quando se trata de atender os interesses das classes dominantes. O Estado é “um comitê para gerir os negócios da burguesia”, dizia Marx no Manifesto do Partido Comunista. O Estado não tem, portanto, apenas um papel passivo, em que expresse a correlação de forças na qual predominam os interesses das classes dominantes e que seja puro reflexo da luta de classes, mas tem efetivamente um papel ativo, “a favor da integração e da organização das classes dominantes e da dispersão e desarticulação das classes dominadas” (Osorio, p. 51).
É isso que uma série de medidas atuais tomadas pelo Estado brasileiro, como a ampliação das possibilidades de terceirização, extinção de direitos trabalhistas, precarização do sistema previdenciário, incentivo à criação de fundos privados de pensão, alterações na legislação sindical, tem demonstrado. São todas decisões tomadas pelo Estado que interferem decididamente nas relações entre capital e trabalho, em prejuízo do trabalhador. E é na esteira da análise dessas medidas que podemos entender o impeachment da presidente Dilma.
Ainda que o Estado seja, como afirma Marx, o comitê de negócios da burguesia, ele não é a própria burguesia. Isto é consequência, além do desenvolvimento da divisão do trabalho, da necessidade de apresentar a Política, em que supostamente todos são iguais perante a Lei, como um campo separado da Economia. Assim, segundo Jaime Osorio, resgatando outros autores seminais do marxismo, existe uma diferenciação entre a classe dominante e sua representação, a que ele chama de classe reinante, o corpo de funcionários e políticos que ocupam as posições mais altas do aparato de Estado, tais como presidentes, ministros, secretários, parlamentares, ministros da Corte, altos comandos militares, etc. E é essa diferenciação entre as classes e suas representações políticas que nos traz a um tema de suma importância, a possibilidade de que ocorram inadequações ou incompatibilidade entre ambas.
Por serem entidades diferentes, e moverem-se em espaços sociais particulares, nem sempre as classes e suas representações caminham no mesmo sentido. Mas, para além dos desencontros rotineiros, para Jaime Osorio:
“Há momentos em que o descompasso entre as classes e sua representação chega a níveis críticos, podendo dar origem a uma crise de representação, que em graus agudos alcança a forma de “crise orgânica”, na formulação de Gramsci. As crises orgânicas são momentos em que a agudização da luta de classes e a ausência de canais acessíveis de expressão levam as classes a se mover e a buscar novas formas de representação, tomando instituições e espaços já existentes ou então criando novas instituições e espaços, com o objetivo de utilizar fórmulas mais adequadas para defender seus interesses.” (Osorio, p. 58-59)

Em nossa opinião, o que aconteceu com o PT e o governo de Dilma Rousseff foi exatamente um desses momentos de “crise orgânica”. Mesmo que o relatório do Banco Mundial tenha sido encomendado pelo ex-Ministro da Fazenda de Dilma, Joaquim Levy, responsável pelas primeiras medidas de ajuste ainda em 2015, quando percebemos a magnitude das transformações propostas para a economia e sociedade brasileira, fica claro que o PT, ainda que contasse com todo seu poder de controle social dado pela política de conciliação de classes, seria incapaz de atender as exigências da burguesia brasileira na velocidade e magnitude demandadas por ela. Isto porque a sua própria configuração enquanto partido, que representa as classes dominantes, mas que incorpora uma série de representações das classes dominadas, como as burocracias sindicais e de movimentos sociais, geraria um cenário com duas possibilidades: ou a fragmentação do partido e de seu poder de controle social ou a decomposição de sua capacidade de conciliação de classe.
É nesse sentido que acreditamos que o relatório do Banco Mundial traz importantes indicações de que medidas esperar da burguesia brasileira nos próximos anos. Isto porque, em nossa opinião, o momento que vivemos não é de uma simples crise capitalista, mas de uma readequação subordinada da economia brasileira às necessidades da economia mundial. Toda a estrutura social e econômica formada ainda nos governos Vargas está vindo abaixo. Este é um movimento que se iniciou nos anos 1990, com a abertura econômica de Collor, seguiu com as privatizações de Fernando Henrique Cardoso, esteve em ritmo mais lento com a alta dos preços dos bens primários durante os governos do PT, mas que tudo indica que deve se acelerar muito nos próximos anos.
A alternativa de sobrevivência que a ineficiente burguesia brasileira tem no sistema capitalista mundial é, ao mesmo tempo em que estreita laços com o imperialismo e as cadeias globais de produção de mercadoria, reforçar ainda mais a superexploração da classe trabalhadora brasileira, a níveis superiores ao de países asiáticos. Isto tudo acompanhado da apropriação de partes cada vez maiores do excedente econômico pelas classes dominantes, como o crescimento da dívida pública tem demonstrado.
Do lado dos trabalhadores, a única alternativa é enfrentar essa verdadeira guerra de classes com toda sua força e organização.
*Maicon Cláudio da Silva é economista formado pela UFSC e Mestrando em Serviço Social pela mesma instituição. 
Referências:
Relatório do Banco Mundial: http://documents.worldbank.org/curated/en/884871511196609355/pdf/121480-REVISED-PORTUGUESE-Brazil-Public-Expenditure-Review-Overview-Portuguese-Final-revised.pdf
Reportagem do G1 sobre resultado da PNAD Contínua:https/g1.globo.com/economia/noticia/metade-dos-trabalhadores-brasileiros-tem-renda-menor-que-o-salario-minimo-aponta-ibge.ghtml
OSORIO, Jaime. O Estado no centro da mundialização: A sociedade civil e o tema do poder. São Paulo: Outras Expressões, 2014.
 
 

Últimas Notícias