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O norte também é Abya Yala

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Por IELA em 30 de agosto de 2018

O norte também é Abya Yala

Batalha de Little Bighorn – a derrota da Sétima Cavalaria

Quando Colombo chegou às Antilhas, viviam mais de 25 milhões de pessoas na parte norte de Abya Yala, onde hoje são os Estados Unidos e Canadá, e, ainda que na parte baixa das terras os espanhóis dizimassem milhões, os povos do norte continuaram vivendo em paz por quase cem anos além. Havia centenas de etnias, centenas de línguas e as gentes cultivavam o milho, verduras e frutas. Conheciam e produziam o chocolate e o tabaco. Na região onde hoje é a Pensilvânia vivia a mais poderosa etnia do noroeste: a dos Iroqueses. Eles tinham por costume trabalhar coletivamente a terra, caçar em equipe e dividir as presas entre as famílias. As mulheres cuidavam dos cultivos assim como das questões do povoado. As crianças recebiam uma educação na qual eram ensinados os valores iroqueses e a solidariedade para com os membros do grupo. Também ensinavam a ser independentes e a não submeterem-se aos abusos de qualquer autoridade. Era um povo livre. Assim descreve a cultura iroquesa o escritor Gary Nash, no livro de Howard Zinn,  “A outra história dos Estados Unidos”:
“Antes da chegada dos europeus não havia leis, nem polícia, nem juízes, nem julgados, nem prisioneiros. Nada da parafernália autoritária das sociedades europeias. Mas, mesmo assim, estavam firmemente estabelecidos os limites do comportamento aceitável. Apesar de se orgulharem do indivíduo autônomo, os iroqueses mantinham um sentido estrito de bem e mal… Se desonrava e tratava com ostracismo ao que roubava alimentos alheios ou se comportava de forma covarde na guerra, até que houvesse expiado suas más ações e demonstrado sua purificação moral aos demais”.
Conforme conta Howard Zinn, os iroqueses tinham linguagem escrita, suas próprias leis, sua história guardada na memória e transmitida de geração a geração. Tinham um vocabulário oral muito mais complexo do que o dos povos europeus, acompanhado de cantos, bailes e cerimônias dramáticas. Cuidavam do desenvolvimento da personalidade de seus filhos, incentivavam a independência, a paixão, a potência e exigiam uma relação de respeito com a natureza. Uma forma de viver que contrastava tremendamente com a dos povos invasores, cheios de cobiça, individualismo e violência. Eles tinham vagas notícias das hordas que andavam pela parte baixa de Abya Yala, e só cem anos mais tarde se encontrariam cara-a-cara com essa gente.
Quando em 1607 chegaram os primeiros ingleses na região onde hoje estão Estados Unidos, aquele era um espaço de muitas nacionalidades. Jamestown, a primeira colônia de migrantes ingleses, foi fincada bem no território de uma confederação indígena liderada por um líder chamado Powhatan. Os índios observaram as levas de gente branca chegando, mas mantiveram-se em estado de espera. Em alguns momentos chegaram até a acolher os famintos, como em 1610, quando uma onda de fome assolou a colônia. Mas, em vez de agradecimentos, os ingleses reagiram com violência, iniciando um ataque a um povoado indígena alegando que era para recuperar aqueles que haviam se abrigado entre os originários para escapar da fome. Mataram as gentes, sequestraram a rainha e seus filhos, queimaram o trigo e as casas e, mais tarde, ainda jogaram os filhos da rainha no rio, matando-a a navalhadas. Uma atitude de violência desmedida. 
Por conta disso, e vendo crescer as colônias inglesas, prenunciando novas atrocidades, os indígenas decidiram enfrentar a invasão. Foi quando também atacaram um povoado branco, matando mais de 300 pessoas. Desde aí, as batalhas se seguiram e a destruição nunca mais parou. Howard Zinn recuperou um documento que havia sido escrito pelo chefe Powhatan, um pouco antes do começo desta luta sem fim: 
“Já vi morrer duas gerações da minha gente. Conheço a diferença entre a paz e a guerra. Por que tomam vocês, pela força, o que poderiam ter por via pacífica? Por que querem destruir aqueles que lhes abastecem com alimentos? Que podem ganhar com a guerra? Por que nos têm inveja? Estamos desarmados e dispostos a dar-lhes o que pedem se vêm em tom de amizade. Não somos tão inocentes para ignorar que é muito melhor comer boa carne, dormir tranquilamente, viver em paz com nossas esposas e nossos filhos, rirmos e sermos amáveis com os ingleses e comerciar para obter seu cobre e sua lenha, que fugir deles e viver mal nos bosques frios, comer raízes e outras porcarias, e não poder comer nem dormir por conta da perseguição que sofremos.”
Mas, nem esta bela demonstração de inteligência política foi capaz de deter a cobiça e a destruição. E, tal qual os primeiros colonos da Virgínia, os demais que foram chegando não encontraram terras vazias. Todas elas eram habitadas por comunidades originárias que ali viviam, mas que estavam dispostas a dividir, viver em paz. Já os ingleses não queriam dividir nada. Queriam as terras e iniciavam a guerra, usando as velhas e eficazes técnicas de Cortéz: ataques deliberados a povos pacíficos, não combatentes, que aterrorizavam os inimigos e ainda dividiam as comunidades. Tanto que 70 anos depois da construção da primeira cidade, em 1676, conta-se de uma famosa rebelião liderada por Nathaniel Bacon, que tinha por objetivo ampliar os limites de Jamestown, tomando mais terras dos índios. Ele chegou a criar um batalhão, fora da oficialidade, e por isso foi considerado “rebelde”.
Com o passar do tempo, as colônias criadas na Costa Leste foram se consolidando e ocupando os espaços. Muitos extermínios se deram e os indígenas já sabiam que ali estava o início de um novo tempo, com a horda de ladrões de terra avançando cada vez mais sobre seus territórios. E, mais tarde, pouco antes da independência, as colônias se debatiam entre o que acreditavam ser três grandes perigos: os índios, os escravos e os brancos pobres. Passados mais de 100 anos da chegada dos primeiros colonos, a lógica capitalista de divisão de classe, a escravidão, a concentração de riqueza nas mãos de alguns e a violência generalizada dos ricos criavam um barril de pólvora para a elite dominante. Havia muito medo de que negros e índios pudessem se unir e derrotar os brancos. Na década de 1750 a 1760 havia na zona mais populosa da colônia perto de 40 mil escravos e 60 mil índios, das etnias Creek, Cherokee, Choctaw e Chickasaw. Não foi à toa que chegaram a ser aprovadas leis impedindo os escravos de circularem pelos territórios ocupados por comunidades indígenas. Politicamente, a elite ainda buscava criar animosidades entre as duas etnias, para evitar a perigosa junção. Também atiçavam os preconceitos junto aos brancos pobres, outra classe bastante temida. O racismo nascia, assim, para resolver um problema prático: impedir que os oprimidos – em maior número – pensassem em revoluções. 
E foi para fugir deste “perigo” que as elites coloniais decidiram inventar uma forma segura de unir todo o povo branco, incluindo pobres, ricos e classe média: iniciar uma revolução contra a Inglaterra para garantir a independência da colônia. Com essa luta, eles poderiam tomar conta de todas as terras, sem mais conceder qualquer riqueza à Inglaterra, e, de quebra, ainda desativavam possíveis rebeliões criando um grande consenso nacional. Foi, no entender de Howard Zinn, uma operação genial dos chamados “Pais da Pátria”, que estabeleceram a marca da cultura política estadunidense, baseada no paternalismo e no autoritarismo.
Neste processo de luta pela independência, os povos originários não foram incluídos. E, eles sabiam muito bem que, caso houvesse a ruptura com a Inglaterra, haveria muito mais desgraça para eles. É que durante o período colonial a Inglaterra fez um acordo com os indígenas, tornando zona proibida as terras para além dos Montes Apalaches. Não foi sem razão que muitas etnias lutaram contra os confederados durante a guerra de independência. Eles tinham consciência que, vencidos os ingleses, a última fronteira que os separava do saque do povo branco estaria devassada.  Não estavam errados. 
A corrida para o Oeste
No Brasil sempre foi bastante comum se ver nos cinemas os filmes de faroeste (corruptela de Far West – que em inglês quer dizer “para o oeste”). Eram os chamados filmes “de mocinho”. E, é claro, os mocinhos sempre foram representados pelos pistoleiros americanos que protegiam suas famílias e propriedades dos ataques dos “selvagens” (os índios). Esta foi a imagem que o cinema estadunidense enviou para o mundo, a qual fez a cabeça de milhões de pessoas. Nos filmes, os pioneiros que avançavam pelo território inóspito e selvagem eram sempre os heróis. Mas, o fato é que estes territórios invadidos pelos brancos já eram milenarmente ocupados por nações indígenas, portanto, nada havia de heroico nesta corrida para o Oeste. Era, na verdade, uma ação de rapina. Os colonos seguiam com suas carroças em busca do ouro.  No caso da América do Norte essa invasão se consolidou depois da Guerra de Independência. Vencidos os ingleses estavam nulos os acordos feitos com as nações indígenas da parte oeste do país. A saga colonizadora se espraiaria pelo país adentro. 
Em 1849 inicia-se um grande rebuliço na fronteira quando começam a espalhar que havia ouro na Califórnia, território violentamente recém-conquistado do México. É aí que o governo começa a incentivar a marcha para o Pacífico. Até então os brancos já tinham ocupado a metade leste do país, até Iowa, Missouri, Arkansas. Agora avançavam pelo país, levando bugigangas e cobertores, acreditando que com isso poderiam contar com a “boa vontade” dos índios e fazer com que eles saíssem do caminho. Para os colonizadores, os indígenas não passavam de selvagens e ninguém estava preocupado em respeitar a cultura ou o modo de vida das comunidades. Muito menos a terra. 
Mas, além da busca do ouro ainda havia outros motivos para esta marcha ao Oeste. Os grandes proprietários de terra, que já enchiam as burras no sul, também queriam expandir seus negócios e sonhavam com grandes plantações tocadas pelos negros escravos. Assim, a região, até então espaço dos indígenas passou a ser também palco de disputa das próprias famílias brancas. Cada uma, a seu modo, buscando riquezas, riscava o país com os imensos carroções puxados por parelhas de cavalos, e abria caminho pelas terras antes desconhecidas no rumo da costa oeste. Nesta jornada, que para as famílias se configurava numa epopeia, quem acabou pagando caro foram as nacionalidades autóctones. Algumas delas, bastante amistosas, como a dos kickapoos, acabaram ajudando esse processo, ensinando a língua e os costumes daqueles que logo seriam os inimigos a serem enfrentados. Vem daí essa propaganda ideológica de retratar os índios sempre como os selvagens, os que impediam o progresso da raça branca e do grande país dos Estados Unidos. Não é sem razão que os homens que se perpetuaram na história daqueles dias tenham sido os “matadores de índios”, como é o caso de Búfalo Bill, tido como um herói nacional. Até hoje são cantadas em versos e prosas as aventuras deste homem que iniciou sua vida de “herói” aos 11 anos, quando matou seu primeiro índio. 
Nesse caminho para o Oeste os colonizadores iam fincando fortes e exterminando as gentes. Assim foi com os Sioux, os Cheyennes, Kiowas, Comanches e os Arapahos. Naquele mundo de “guerra à morte” em busca do ouro, também abundavam os caçadores de animais selvagens, que matavam aos milhares, desequilibrando ainda mais o mundo originário. Um exemplo disso foi o da caça ao Búfalo, animal sagrado para os indígenas daquela parte dos Estados Unidos. Contam os historiadores que quando a caminhada dos brancos em direção ao Oeste começou, ainda havia certa convivência pacífica com os índios, mas, passados cinco anos, o nível de violência foi tão alto que mesmo as etnias mais impassíveis passaram a resistir. A caça sanguinária ao búfalo foi um grave detonador. Os documentos oficiais não deixam dúvidas de que foram os brancos a causa de toda a violência do oeste. Assim diz um relatório formulado por uma comissão presidencial em 1869:
“Toda a história da relação do homem com os índios na fronteira é um relato revoltante de assassínios, atrocidades, roubos e iniquidades praticadas quase sempre pelo primeiro, e de explosões selvagens ocasionais e barbaridades excepcionalmente cometidas pelos últimos, em represália”.
Com a vitória da colonização do oeste, a partir de 1867,  outra praga chegou para piorar a situação dos indígenas: a estrada de ferro. As tribos mais antigas, dos Kiowa, Cheyennes, Arapahos e Comanche aceitaram subscrever o Tratado de Medicide Lodge, o qual dava a eles o território que é hoje o Estado de Oklahoma, e prometia não incentivar aldeamentos de gente branca entre os rios Arkansas e Platte. Os chefes mais antigos decidiram acatar o acordo, mas os mais jovens desconfiavam que os bancos não o fossem respeitar. Isso causou divisão entre os índios. Já os bravos Sioux, liderados por Nuvem Vermelha, se recusaram a assinar o tratado e seguiam resistindo à invasão. Por conta destas resistências o governo central enviava mais tropas para a região, recrudescendo a violência. Era um tempo de muita dor para as comunidades indígenas. E foi por aqueles dias que se destacou também o sanguinário general da Sétima Cavalaria, George  Custer. 
Também foi com a chegada da estrada de ferro e a formação das pequenas vilas que os búfalos começaram a sumir, seja pelo extermínio, seja porque fugiam do burburinho humano. Os brancos, que não tinham a mesma devoção pelos búfalos como os indígenas, caçavam sem parar. Para se ter uma ideia, em apenas uma década, pouco depois da guerra civil, foram dizimados milhões de búfalos, acabando assim com a base ecológica e material da vida indígena. Para os povos originários da região, o búfalo era sagrado. Dele vinha a carne, a pele, os arreios dos cavalos, a casa, as roupas, a cama. Havia o tempo de caçar e tudo era feito segundo um ritual sagrado. Mas, essa cultura não era respeitada, os brancos acabavam com o búfalo e forçavam as comunidades a sair do caminho. E os índios partiam para outras terras. Só que ao chegar, não havia o búfalo, então eles tinham de ir, cada dia mais, se rendendo à lógica das reservas organizadas pelo governo. 
Os caçadores de búfalo eram tão importantes para a política de “limpeza” do capitalismo imperante que até foi instituída uma medalha para oferecer aos que mais matassem esse animal. Num dos lados da medalha havia um búfalo abatido, e no reverso, a figura de um índio desconsolado. Estes animais eram criaturas absolutamente dóceis e um homem com um revólver podia matá-los sem problemas. Corriam pouco e não ofereciam resistência. O filme “Dança com Lobos” é um belo retrato do que significava o búfalo para os índios e sua total docilidade, apesar do aspecto.
Os homens brancos não queriam saber dos índios por perto dos caminhos da estrada de ferro, por isso delimitaram reservas de onde eles não podiam sair. Assim diz um informe do General Sheridan, um dos chefes da campanha de extermínio índio: “Escolhemos e proporcionamos reservas para todos [os índios] fora das grandes vias de penetração. Os que permanecem nas suas antigas regiões de caça são inimigos e devem ser tratados como tais. O país é tão grande que não podemos fazer uma guerra só e vencê-la. Em vista disso, somos obrigados a arriscar-nos e a eliminar os índios à medida que os encontramos”. Ainda assim, naquele ano de 1867 havia mais de seis mil índios resistindo nos caminhos abertos pelos brancos.

Touro Sentado – chefe Sioux, venceu Custer mas não venceu a guerra

No inverno de 1868 eram inúmeras as ações sangrentas do exército ianque (Sétima Cavalaria) contra os índios, principalmente contra os Cheyennes, que tinham como chefe o famoso cacique “Chaleira Preta”. No mês de novembro, o general Custer, aproveitando-se de uma momentânea fraqueza dos cheyennes, que enfrentavam doenças, caiu sobre o acampamento de “Chaleira Preta”, matou os 103 guerreiros que ali estavam, o cacique, e um número incontável de mulheres e crianças. Por conta disso foi aclamado como herói e até hoje é imortalizado como tal nos filmes de “mocinho”.  
Oito anos depois o general Custer iria provar do veneno da derrota. Foi no dia 25 de julho de 1876, durante a batalha de Little Big Horn, no estado de Montana. Naquele dia, uma coalizão entre Cheyennes e Sioux, liderada pelos famosos chefes Touro Sentado e Cavalo Louco deram batalha à Sétima Cavalaria, do general Custer. As tropas tinham sido enviadas para Montana porque um relatório escrito por E.C. Watkins informava sobre as hostilidades dos índios. Mas, na verdade, o que estava em jogo ali eram os interesses mineiros. Hordas de mineradores estavam de olho nas montanhas Black Hill, território tradicional dos indígenas. Por aí já se nota o quanto essa técnica de elaborar relatórios falsos é antiga no país.  Foi o mais famoso dos confrontos entre brancos e índios. Custer estava bem acostumado a dizimar acampamentos indígenas e procedeu como sempre. Dividiu o exército em quatro flancos e atacou.  Dessa vez sua tática de colocar alguns grupos para correr não deu certo. Os indígenas estavam preparados para combater. Assim, depois de horas de combate, na histórica Batalha de Little Bighorn, a sétima cavalaria foi aniquilada, sendo a maior derrota do exército estadunidense durante as chamadas “guerras índias”. Da tropa de Custer sobraram apenas dois homens. Era o fim do general que se julgava invencível.
Mas, apesar dessa vitória avassaladora e emblemática, a sina dos povos originários era mesmo a da destruição. Com o avançar das cidades e o fortalecimento do capitalismo, o que restou aos indígenas foram as reservas. Perdida a batalha pelo território original, as nacionalidades que conseguiram sobreviver aceitaram os espaços confinados. Muitos se misturaram ao mundo branco. Mas, como no Brasil, a integração nunca foi real. Um índio sempre é um índio, no mais das vezes tratado como marginal, ser de segunda classe. O fato é que no norte, tal como no sul, as nacionalidades originárias estão despertas, lutando por sua cultura, seus direitos e pela retomada de territórios. Tudo vibra na Terra do Tio Sam. E os tambores chamam para novas batalhas.

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