Início|Brasil|O eterno retorno do governo acabado

O eterno retorno do governo acabado

-

Por IELA em 25 de maio de 2020

O eterno retorno do governo acabado

Corintianos antifascistas

Lembrando dos últimos 16 meses, quantas vezes tivemos a sensação de que o governo estava por um fio, que Bolsonaro era carta fora do baralho, que a crise institucional estava escalando para níveis irreversíveis, que alguma coisa ia acontecer e na hora H… as forças normalizadoras entraram em campo, o jogo voltava para o início do tabuleiro, as partes se acomodavam e se preparavam para a próxima rodada de escalada. “Desta vez passou dos limites”, dizia o comentário de algum ex-aliado. E o mesmo comentário se repete todo mês desde 2018. Não há surpresa. A surpresa é perceber como essa dinâmica recorrente, repetida, previsível, não é entendida como tal.
Não está dado que as coisas seguirão nessa repetição, pode ser que exista um efeito cumulativo ou uma situação-limite que resulte enfim numa queda. Mas precisamos nos liberar do jogo psicológico que intercala euforia e frustração. Para isso, seria importante imaginarmos o contrário do nosso desejo. É possível que o governo Bolsonaro não caia? Que as sucessivas crises não tenham um desfecho rápido e redentor de nossas perdas? Como podemos melhorar nossa capacidade de reagir à permanente turbulência?
Em julho de 2016, um artigo de Michael Moore teve grande difusão ao explicar os 5 motivos pelos quais se poderia prever que Donald Trump seria eleito quatro meses depois, apesar da incredulidade da maioria. Em agosto de 2017, foi a vez de meu amigo Andrés Del Río escrever sobre 5 motivos que levariam Bolsonaro à presidência, isso foi mais de um ano antes do episódio de Juiz de Fora (não a saída do Moro, mas a facada). Na ocasião, Andrés Del Río fez um profético comentário sobre a relação entre o presente e a memória: seríamos um Funes borgiano ao reverso, de tão imersos no presente não conseguimos produzir memória. Há uma semana escrevi, sem lembrar do texto de Andrés, que vivíamos no dia da marmota, do filme o Feitiço do Tempo, todo dia se repete.
Retomo aqui os artigos de Michael Moore e Andrés del Río para propor não 5, mas 10 motivos pelos quais é bastante exequível que Bolsonaro permaneça no cargo apesar de mais uma turbulência, depois de tantas. Espero que eu esteja errado. O objetivo não é desanimar ninguém, mas exercitar uma especulação que confronte nosso viés de confirmação, isto é, essa mania de querer ajustar a realidade à nossa vontade.
1. Bolsonaro até agora não quis governar de forma convencional, jogou sempre no limite, fabricou inúmeras crises, polarizou e avançou o sinal em tudo o que podia. E se ele fizesse algum mínimo esforço para não se atrapalhar? Lembremos da Baía de Guanabara, em menos de 1 mês de quarentena até tartaruga marinha deu pra ver na água cristalina onde antes era só lixo e poluição. Pra se segurar mais firme, bastaria agir minimamente como um presidente, segurar a língua e os conflitos por algumas semanas. Pode ser que ele não consiga, que a necessidade de criar crises seja incontrolável, mas o que parece mesmo é que ele sabe que governa melhor fazendo o que sabe.
2. As mídias. Parece que encarar a Rede Globo e a Folha de São Paulo pode resultar em algum tipo de queimação, mas não é isso o que temos visto. O caso de Crivella no Rio é emblemático, no coração da Rede Globo foi eleito e governa mesmo em pé de guerra com a emissora. Bolsonaro tem Record, SBT, Band e agora CNN. E o mais importante, uma rede de comunicação via redes sociais com capacidade de mobilização. Não é só robô. As mensagens bolsonaristas ainda tem mais capacidade de percolar a base social do que as outras, e isso não depende de um suposto “gabinete do ódio”.
3. O coronavírus pode afetar? Sim. A quarentena é a posição mais responsável? Sim. Mas ao desagregar as responsabilidades e não produzir uma capacidade de coordenação nacional do problema, principalmente na questão do monitoramento via testes, os governadores e prefeitos que optaram pela quarentena ficam também sem instrumentos concretos para coordenar uma saída. Os números são subnotificados, a percepção do problema é segmentada e o apelo contra os governadores e prefeitos cresce na base. Tudo pode mudar com uma grande catástrofe. A epidemia pode efetivamente fazer irromper uma dimensão real de crise que até então não havia sido vista. Mas por enquanto isto não está dado.
4. A crise com os governadores. No dia seguinte ao famoso discurso de 25 de março, em que falava do histórico de atleta e do fim da quarentena, 26 governadores assinaram uma carta se posicionando contra Bolsonaro. Um mês depois, após sua participação numa manifestação pelo fechamento do STF e do Congresso, apenas 20 assinaram uma carta em repúdio. Continua sendo maioria, mas 6 a menos. Conforme as economias dos estados vão se esgarçando com a paralisia, a dependência do governo federal se acentua e diminui o apelo para grandes indisposições com o governo federal. A situação de calamidade pode acentuar problemas de segurança pública, fazendo com que os governadores precisem mais ainda de suas polícias. No entanto, as mesmas são fortemente influenciadas pelo Bolsonaro, chegando a desafiar a autoridade dos governadores em diversas situações. O caso dos tiros em Cid Gomes, em Sobral, foram uma demonstração da violência e da desenvoltura que os grupos de policiais têm ganhado em diferentes estados. Em situações mais críticas, um governo estadual pode ser submetido a uma combinação entre “golpe boliviano” e intervenção federal moderadora.
5. E o Moro? Bem, lembremos do Mandetta. Numa semana tinha 76% de aprovação, era “indemissível”, na semana seguinte começou a ser esvaziado, na outra foi demitido e na outra foi esquecido. Claro que o Moro é mais forte, tem uma base mais antiga e sempre aparentemente mais forte que a do Bolsonaro. Mas vejam, quando ocorreu a Vaza Jato, parte da aura de incorruptível legalista do Moro caiu e se fortaleceu o lado Batman, aquele que age nas sombras, mesmo fora da lei, para fazer a justiça. Quem ficou com ele desde então aceitou essa sua faceta, que o identificava mais fortemente com Bolsonaro. Agora, Moro quer se desvencilhar e vestir novamente sua capa de homem honesto e retilíneo. Pode ser que recupere algum cartaz, principalmente como figura a ser insuflada por aqueles que querem uma oposição de direita ao Bolsonaro. Mas a incoerência de Moro será cobrada ao longo do tempo. Seu nome não tem como se manter muito tempo na mídia a não ser por jogos de acusações que tendem a arrefecer, a menos que algo muito quente surja – o que dificilmente não afetaria também a própria reputação de Moro, por ter aquiescido em troca de sua própria manutenção no cargo. Lembremos que Moro, ao contrário de Bolsonaro, nunca enfrentou um ambiente hostil e sempre foi “carregado no colo” pela grande mídia. Sem cobertura midiática permanente e qualquer grande feito nos últimos anos que o faça ser lembrado, tende a uma popularidade decrescente
6. Militares. Aqui reside um dos principais aspectos a serem levados em conta. Nenhum dos rumos que a política nacional tomou desde 2015, quando se inicia o movimento de desestabilização da Dilma, foi tomado sem o consentimento e/ou a participação ativa dos militares. Então se muitos agentes dançaram no salão, é porque tinha algum DJ verde-oliva modulando o ritmo. Não adianta esses mesmos agentes acharem que tem peso por si próprios, quando na verdade estavam apenas cumprindo tabela num campeonato de resultados controlados. Falar em tutela dos militares não é algo novo, alguns estudiosos apontam isso para toda a Nova República. A novidade é que da tutela passaram ao poder operacional, e não é de agora também. Como aponta Piero Leirner, pelo menos desde os anos Temer, com o reforço do GSI de Etchegoyen, principalmente no pós Joesley 2017, e a intervenção federal no Rio de Janeiro, os militares assumiram cada vez mais as rédeas do poder civil, abrindo caminho para a ascensão de Bolsonaro. A leitura que trata os militares como os moderadores é ilusória. Eles são parte fundamental do governo e ditam seu funcionamento mesmo quando – e ainda mais quando – parecem não fazê-lo. No entanto, aqui fica uma dúvida. Será que Bolsonaro e os militares podem se manter nessa dinâmica de descontrolado e moderador indefinidamente ou existe um desgaste cumulativo que vai obrigar os militares ao descarte do “fuzível queimado”? De qualquer forma, os militares atuam numa zona completamente segura, em que qualquer fracasso do Bolsonaro que culmine em renúncia ou impeachment pode ter como solução uma posição ainda mais central dos militares no poder do Estado.
7. Evangélicos. A defesa de Bolsonaro nos meios evangélicos se mostrou cada vez mais aguerrida ao longo dos últimos dois meses e ficou bastante evidente no episódio da participação de Bolsonaro nos atos do QG do Exército. Bolsonaro joga com esse segmento sem titubear. Coloca em evidência a pauta antiaborto, participa de dia de jejum e defende a abertura das igrejas como serviço essencial em meio à quarentena. Com a saída do Moro, colocou o ministro “terrivelmente evangélico” para o substituir, o que certamente estanca qualquer ensaio de dissidência nesse segmento.
8. EUA e Trump. No cenário de incertezas atuais, as opções mais conservadoras estão prevalecendo. Bolsonaro não teria motivos para se aventurar se voltando para o multilateralismo, ou para uma neutralidade em relação à China. Primeiro, porque a China é pragmática, vai fazer negócios quando lhe interessar, independentemente de declarações alopradas. Cabe lembrar que no auge da guerra verbal com Eduardo Bolsonaro o Brasil liberou a participação da Huawei no leilão do 5G, que estava travada. Segundo, porque o Brasil está no quintal norte-americano, com uma plaquinha escrito “Proibido pisar na grama. Ass: Monroe”, colocada há quase 200 anos. E se Trump não for reeleito? Isso tampouco mudaria num contexto em que os vínculos orgânicos estão bem estabelecidos entre os respectivos deep states de cada país. E isso não tem muito a ver com a verborragia de Eduardo Araújo e Eduardo Bolsonaro, mas sim com os militares do Planalto.
9. Economia. Qual é a diferença entre um PIB negativo em -2%, -5% ou -10%? Qual é a diferença entre 15, 20 ou 25 milhões de desempregados? Qual é a diferença entre um dólar a R$ 5, R$ 6 ou R$ 8? Se tem uma coisa que a pandemia fez foi bagunçar completamente os parâmetros que poderiam ser utilizados para avaliar retrospectivamente as responsabilidades pela crise econômica. O discurso de que é tudo culpa da quarentena já está plantado desde março de 2020. Os bancos e grandes empresários já receberam seus mimos enquanto grande parte da população mal consegue acessar a ajuda emergencial. Até que essa estrutura altamente desigual resulte num colapso incontornável, muitas manobras ainda podem acontecer para desviar
10. Oposição real. Por que o cachorro entrou na igreja? Porque a porteira estava aberta, diz a charada. A questão para nós é: que forças reais de oposição podem fazer alguma diferença para pender a balança contra Bolsonaro? Não há um movimento de massas organizado. Tão cedo não haverá nada além de panelaços. E os setores organizados da esquerda estão sem capacidade de iniciativa, se resignando ao papel de espectadores. Além de oposição parlamentar, as únicas ações políticas dos partidos de esquerda são jurídicas, fazer denúncias nos tribunais superiores, abrir pedido de impeachment, pra não falar da carta pedindo que o presidente renunciasse… ou então soltar tuíte. Sem força autônoma, a esquerda parece estar fadada à “frente ampla”, que busca ressoar experiências do passado, mas esquecendo que nos momentos anteriores havia um grande movimento de massa apoiando as pautas em defesa dos trabalhadores e dos direitos sociais. Hoje em dia, não há um discurso coeso capaz de articular as denúncias contra a desigualdade por trás da catástrofe da epidemia, as enormes perdas que os trabalhadores estão sofrendo, a precarização da infraestrutura de saúde e o favorecimento aos bancos e empresários. Em vez disso nos perdemos na superfície dos processos de disputa dentro do bloco dominante.
Estamos no cronograma bolsonarista…
Nossa percepção do tempo político tem sido embaralhada nos últimos anos por uma fratura temporal da ordem dos acontecimentos. A interferência das investigações judiciais, com informações privilegiadas, com seus vazamentos controlados, operações oportunistas, perícias, testemunhos e denúncias, foi fartamente utilizado desde 2014 tanto para desestabilização de alguns, quanto para a preservação de outros. A arapongagem oficial e extraoficial, a chamada inteligência, hoje concentrada nos generais do Gabinete de Segurança Institucional, também promovem ações e declarações aparentemente desconexas e contraditórias, cujos nexos se completam fora da ordem cronológica. Por fim, temos o controle do movimento virtual, likes, compartilhamentos, buscas, todo o big data com suas bolhas algorítmicas e a velocidade de fatos e boatos que podem ser manipulados por quem tem acesso aos meios de dar capilaridade às mensagens.
Diante desses três feixes nosso curto campo de visão está sendo constituído. Quando uma crise desata e nós agimos de forma reativa, é bem possível que os strikes seguintes já estejam de alguma forma encadeados pelos novos senhores do tempo e do timing. Olhando retrospectivamente, vemos como em vários momentos Bolsonaro detinha o domínio da iniciativa, da narrativa e do timing dos processos que ele desencadeou. E apesar de sempre pensarmos que se ultrapassou algum limite, a crise da semana anterior é normalizada na semana seguinte, numa dinâmica estrutural de estabilização pelo conflito permanente de forças.
O impeachment, nesse cenário, pode ser uma bandeira, um protesto, uma expectativa, algo que unifique uma pauta. Mas de nenhuma forma é garantido que o governo esteja para entrar em colapso a qualquer momento. Nenhuma mudança vai cair no colo da esquerda pelas mesmas mãos e procedimentos daqueles a quem acusamos de golpistas. Precisamos construir um horizonte que vá além das reduzidas opções que nos ofertam: renúncia, impeachment, intervenção…
O feitiço do golpe
No Feitiço do Tempo (1993), filme estrelado por Bill Murray e Andie Macdowell, o meteorologista Phill acordava todo dia no mesmo dia, o dia da marmota. Nesse dia, em alguma cidade do interior da Pensilvânia, uma marmota saía de sua gaiola para anunciar se o inverno iria durar muito ou pouco. A metáfora apareceu em um recente comentário de Piero Leirner, que nesta semana já se exasperou em CAIXA ALTA para comentar a eterna repetição da notícia de que os militares “moderaram” o discurso do Bolsonaro, depois de terem sentido um “mal estar” com a participação do presidente na manifestação do último domingo. Em outras semanas tivemos os militares que “seguraram” o Mandetta, depois “soltaram” o Mandetta. E os que disseram que defendem a democracia. E os que vão controlar o presidente. E os que vão mediar a relação com os demais poderes. E os que vão fazer um “governo operacional”, e daí por diante. 
A dinâmica se repete, mas todos os atores parecem combinar como se tudo fosse sempre uma coisa nova. A plantação de notinhas de generais anônimos na imprensa é infinita. Nem mesmo o fato aconteceu, já existe algum rumor, algum comentário vazado para os “agrojornalistas” (segundo Romulus Maya, os que vivem de plantar notícias). Alguns destes se especializaram em interpretar o humor dos generais, que como a marmota do filme, saem todo dia a manifestar alguma consideração, modulando discursos, discotecando no salão da política nacional. Às vezes uma música mais agitada pra “tocar fogo” no baile, outras vezes uma música lenta pros casais dançarem juntinhos. Às vezes os clássicos dos anos 70, outras os hits dos 90, e por aí vai. Mas é o eterno dia da marmota. 
O debate na oposição é saber se iniciam uma campanha pelo impeachment ou não. Como será o “fora Bolsonaro”? O problema é que também aqui a narrativa não se sustenta. Se o governo Dilma foi tirado por um golpe, se o Lula foi tirado das eleições também por golpe e o Bolsonaro subiu ao poder com o apoio dos militares e com a anuência de todo o establishment, que forças são essas que vão ressurgir para gerar, pela via institucional, um impeachment? Mais de 30 pedidos de impeachment já chegaram à mesa do Congresso Nacional, se houvesse alguma mínima capacidade de mobilização bastaria um.
Com uma sensação de dejavu, comecei a juntar algumas manchetes e notícias desde janeiro de 2019. É impressionante, o padrão não muda:
1) a base do governo parece estar sempre se fragmentando, a cada mês temos um novo spin-off (como um personagem de um filme ou seriado que ganha o seu próprio filme ou seriado, como o Better Call Saul que saiu do Breaking Bad, ou o Creed, que saiu do Rocky). Logo o imaginário político de situação e oposição está todo povoado com os nomes da direita. Sem contar a oposição dentro do próprio governo. Bebianno, Santos Cruz, Kim Kataguiri, Wilson Witzel, João Doria, Joice Hasselman, Janaína Paschoal, Ronado Caiado, Mandetta são alguns dos nomes que aprendemos a pronunciar nos últimos 15 meses. Pior que ganham manchetes na própria imprensa alternativa como se fosse a ampliação da base oposicionista e não um sintoma da captura do anti-Bolsonarismo por alternativas de poder que permanecem no marco do próprio bolsonarismo estrutural, diante da incapacidade de a esquerda impor sua pauta.
2) a esquerda parece estar desde as eleições avaliando qual é a melhor “estratégia”, como se em algum momento tivesse domínio da iniciativa e capacidade autônoma de impor sua pauta. São recorrentemente mobilizados para alavancar o discurso bolsonarista, servindo de espantalho ideológico, enquanto os problemas concretos que poderiam estruturar um discurso capaz de disputar algum lugar na sociedade acabam ficando em segundo plano. A oposição parlamentar é subsumida pelo centrismo de Rodrigo Maia.
3) Diante das falsas questões insufladas pela abordagem midiática, os moderadores aparecem em cena. Ora o gabinete da democracia (Toffoli + Maia + Alcolumbre), ora a ala moderada dos generais racionais, ora a voz invisível do mercado, que emite os sinais. Ou então uma combinação variável entre os três, limpam o salão para a crise seguinte. Tudo acontece num cenário completamente seguro, onde nada acontece de fato, nenhum fato novo, nenhum turning point, tudo dentro do script. É o que vemos com todas as possibilidades de lançar propostas de impeachment desde 1o de janeiro de 2019. Alavancam a horda bolsonarista, acalantam o sono da oposição, enquanto os mediadores racionais seguem tocando o barco.
O eterno retorno do governo acabado
Janeiro/2019: caso Queiroz, rachadinha, depósitos suspeitos na conta da primeira dama e do Flavio Bolsonaro. Nassif declara que Bolsonaro “dificilmente escapará de um processo de impeachment”.
Fevereiro/2019: demissão de Bebianno, críticas à reforma da previdência e ao Congresso Nacional (telecatch por causa do orçamento impositivo que até Eduardo Bolsonaro votou a favor), aprovação da reforma ministerial e a “derrota” de Moro que ficou sem o COAF no MJ (enquanto o Ministério do Trabalho foi rifado). Celso Rocha de Barros levantou a bola e Gilberto Dimenstein explicava porque já se falava em impeachment do Bolsonaro.
Março/2019: episódio Golden Shower, Bolsonaro quebra decoro do cargo compartilhando vídeo pornográfico para depreciar Carnaval brasileiro. Miguel Reale Jr., Mister Impeachment, já viu motivos aí para pedir mais um.
Abril/2019: depois da comemoração do golpe de 64, Miguel Reale Jr. volta a falar em impeachment. Numa entrevista a Istoé, responde a pergunta “Os militares viraram uma força moderadora?” – “Moderadora, interpretativa e acomodativa. Primeiro porque o mundo evoluiu de tal forma que o mundo não permite mais ditaduras. Existe uma rejeição a qualquer ato de ditadura e isso seria inadmissível na comunidade internacional. E depois, o Brasil se consolidou como democracia, apesar de todos os partidos políticos estarem fragilizados houve uma consciência democrática que se cristalizou especialmente junto à classe média, à intelectualidade e à massa crítica do país”. Moderadora é a palavra repetida de sempre, mas o que ele quis dizer com interpretativa e acomodativa, teria que ficar para outra entrevista.
Maio/2019: manifestações que começaram a convocação pedindo intervenção militar e fechamento do Congresso são “apaziguadas” para defender Moro e Bolsonaro. Enquanto isso, a defesa das universidades mobiliza milhões nas ruas em todo o Brasil. Reinaldo Azevedo já enxerga o impeachment no radar, uma vez que Bolsonaro não parava de ouvir a horda de malucos a sua volta. Quem seriam as vozes racionais?
Já a revista Exame apontava: “índices de aprovação de Bolsonaro estão em queda, antigos aliados que esperavam por um governo decisivo mudam de lado e mercado financeiro mostra apreensão”. A receita completa: aliados saindo, mercado preocupado. Mas logo no primeiro parágrafo a ladainha de sempre: “No início deste mês, a alta cúpula militar enviou uma mensagem clara ao presidente Jair Bolsonaro: controle seu exército digital de extrema-direita ou seu governo irá implodir”. As vozes da razão dizendo qual era o caminho.
Julho/2019: depois de um calmo junho marcado pela Vaza Jato e pela ausência de grandes mobilizações contra a reforma da previdência, Bolsonaro volta à carga fazendo uma declaração sobre pai do presidente da OAB, Felipe Santa Cruz. Depois do recesso parlamentar, deputados da oposição, que deixaram a reforma da previdência passar batida, agora falam em impeachment.
Agosto/2019: Revelações de bastidores: Toffoli se reuniu com presidentes do Congresso e Senado e com militares para conter movimento para afastar Bolsonaro. Ufa! Dessa o Bolsonaro escapou por um fio.  O gabinete da democracia desarmando mais uma bomba! Ai que alívio!!! As instituições funcionam normalmente e os militares estão conseguindo moderar o presidente.
Agosto/2019: o impeachment não sai de pauta, agora na Rede Brasil Atual, um comentário que expressa o espírito de uma época: “A aproximação do presidente Rodrigo Maia (DEM-RJ) e do governador de São Paulo, João Doria, que tem tentado estrategicamente se afastar do presidente em cuja campanha pegou carona em 2018, poderia indicar um potencial sinal vermelho a Bolsonaro no longo prazo, caso sua  popularidade caia a níveis insustentáveis. Com apoio social e de lideranças políticas  de peso, Bolsonaro estaria à beira do precipício”.
Setembro/2019: crise com caminhoneiros (?!). Essa aposto que ninguém se lembrava, mas já pensou uma greve de caminhoneiros contra Bolsonaro? Ia ser um estrago! Só que não. Alarme falso.
Outubro/2019: Parece que a coisa havia esfriado, então um impulsionamento de hashtag aqui já no automático, pra não perder o costume…
Novembro/2019: aqui foi uma daquelas semanas que lembrou a do “gravadorzinho de Joesley”. Começa com Eduardo Bolsonaro reivindicando o AI-5, com direito a reverberação de General Heleno e passa pelo estranho caso do depoimento do porteiro do condomínio que disse ter recebido autorização da casa de Bolsonaro para que os supostos assassinos de Marielle pudessem se encontrar no apartamento antes do crime. Uma live destemperada de Bolsonaro na Arábia Saudita acusando a Globo e o governador Witzel. E depois algumas tentativas estabanadas de mostrar as gravações do interfone e pressionar os porteiros. Pronto, em alguns dias mais um proposta de impeachment, agora por violação nas investigações do assassinato de Marielle. Desta vez, David Miranda no comando.
Dezembro/2019: Já era Natal na Leader Magazine, mas aí o TSE relembra das acusações de caixa 2 para impulsionar fake news nas eleições. Um ano depois, quando já não adianta de nada. Só para botar um garrote no pescoço de Mourão e lembrá-lo que ainda existe uma ficha que pode pegá-lo, com impugnação da chapa. Agora Esmael Moraes contando como o antigo partido do presidente, PSL, estaria abrindo informações comprometedoras sobre a campanha. Mais um limited hangout pelo jeito.
Janeiro/2020: antes que alguém esquecesse, é o próprio Bolsonaro que puxa o fio do impeachment, para justificar porque não poderia vetar fundo eleitoral aprovado no congresso, dizendo que incorreria em crime ficando suscetível a um impeachment. Pura balela, Bolsonaro querendo se mostrar responsável e justificar para sua horda por que não poderia barbarizar o sistema. Mas a palavra impeachment tem que se manter no ar e aqui parece evidente sua funcionalidade: aparentar uma asfixia permanente do governo pelas instituições que o cerceiam.
Fevereiro/2020: motivo agora é desrespeito a jornalistas. Zzzzzz…
Março/2020: agora esquentou de novo, assim como no ano anterior, começa uma polêmica sobre convocação de ato pró-intervenção militar, lobo em sua pele de cordeiro “contra o STF e o congresso, em apoio a Bolsonaro”. Premido pela necessidade de distanciamento social, Bolsonaro desconvoca ato, depois reconvoca e sai à rua para cumprimentar manifestantes, no fatídico gesto que despertou a rodopiante Janaína Paschoal – esta pelo menos nem se dá ao trabalho de chamar impeachment como seu parceiro Reale Jr., prefere chamar logo os militares a emparedar Bolsonaro e colocar Mourão – “que pelo menos entende de defesa” – para a guerra contra o coronavírus. Já o ex-ministro de Dilma, José Eduardo Cardozo (conhecido no Intercept como “suprimido suprimido suprimido” – expressonautas entenderão), disse que Bolsonaro corria sérios riscos. Só faltou Janaína e Cardozo se juntarem a Reale Jr. para uma partida beneficente no Maracanã, Amigos de Janaína vs. Amigos de Cardozo. O vice-presidente, rebaixado da posição de general para “bombeiro”, ganhava apoio da ala dos militares racionais, manchete repetida desde as eleições de 2018.
Duas semanas depois viria a “bala de prata”: dia 30 de março, lideranças nacionais da esquerda se juntam para uma carta pedindo a renúncia de Bolsonaro. Não se via nada tão contundente desde 1905, quando Padre Gapon leva uma carta ao czar russo em 1905 pedindo direitos. A vantagem de Gapone é que sua carta pelo menos tinha mais 130 mil assinaturas e foi entregue após uma marcha de mais de um milhão de russos, números que passaram longe de Haddad, Ciro, Dino e Boulos, alguns dos signatários do pedido de renúncia. Não teve “domingo sangrento” nem encouraçado Potemkim, pelo contrário, um 31 de março ensolarado com as tradicionais odes ao golpe de 64 na ordem do dia. Mas Haddad cantou vitória: “Bolsonaro sentiu a força do movimento, pois dizem que ele até chorou”. “Dizem…” foi mais uma notícia plantada na Folha, soprada pelo oráculo chamado “ala dos militares racionais”, que devem ter cantado como os Racionais: “diz que homem não chora/ tá bom, falou/ não vai pra grupo irmão aí/ Jesus chorou”.
Abril/2020: ah mas agora vai, o governo acabou, se preparem, apertem F5 no UOL pois a qualquer momento o Bolsonaro pode cair. Domingo dia 20 de abril foi o momento auge. Bolsonaro se dirige aos manifestantes que cercam o Quartel General do Exército para apoiar Bolsonaro, pedir AI-5 e fechamento de congresso e STF. A República está chocada, como pode o incontrolável Bolsonaro fazer isso? A ala dos militares racionais anônimos planta mais uma: estamos descontentes, um “mal estar” súbito. Depois de um sal de frutas, no dia seguinte entrou em cena o gabinete da democracia, Toffoli conversa com os generais que fazem Bolsonaro recuar e dizer que não disse o que disse, que defende as instituições. A manchete: “Bolsonaro modulou discurso após pressão dos militares e do judiciário”. Bolsonaro moderou discurso, modulou discurso, recuou, foi controlado, retrocedeu… e por aí vai. Sempre após a ação sensata e racional da ala dos moderados. Já havia acontecido uma semana antes com o “Fica Mandetta”, logo seguido pelo “Sai Mandetta”, os mesmos militares que o seguraram numa semana ajudaram a empurrá-lo na outra. Estão sempre “suavizando a curva”, sem sobressaltos, agindo de forma racional.
Não caiu? Ah, mas a semana ainda não acabou. A tensão é diária. Um jurista desconhecido pediu que STF obrigue o Rodrigo Maia a analisar o impeachment de Bolsonaro. E Augusto Aras abre inquérito para investigar o ato golpista de domingo – investigar a participação de três deputados, que singelo! Mas Thaís Oyama revela segredos do Planalto: Bolsonaro está com medo, mas não é de Aras. Ele não consegue dormir porque dois ilustres juristas desconhecidos apresentaram um mandado de segurança acusando o presidente por quebra de decoro ao ter promovido aglomerações. A peça “com bom acabamento” (critério fundamental para fazer o poder balançar) caiu nas mãos do perigoso Celso de Mello. Acho que depois dessa Bolsonaro deve até chorar de novo.
Tabelinha
Após esse exercício retrospectivo, podemos montar uma tabelinha para os próximos meses, é só colocar lá em cima o mês e na primeira coluna as perguntas a seguir. Aí a cada mês a gente preenche as células da tabela.
Linha 1: Qual é o conflito ou polêmica em que o Bolsonaro ou seus filhos vão entrar?
Linha 2: Qual vai ser a reação da esquerda, dando destaque para esse conflito? Twitter, hashtag, artigo na Folha, pedido de impeachment, discurso lacrador no congresso, carta pedindo renúncia…
Linha 3: Qual vai ser o novo ícone da direita que vai despontar como antagonista do Bolsonaro nessa polêmica e ser replicado na mídia alternativa como sintoma da “dissidência interna” do goveno? Depois de Bebianno, Frota e Hasselman, General Santos Cruz, Dória e Witzel, Janaína e Kim Kataguiri, Moro e Mandetta, Ronaldo Caiado…
Linha 4: Quem vão ser os personagens das “instituições que funcionam” e da ala moderada militar que vão aparecer como a turma do deixa disso, a mediação? Aqui dá pra abrir uma subcoluna para um ministro do STF da vez e o nome de um militar do primeiro escalão, geralmente Mourão, Braga Netto, Ramos Pujol, mas pode ser militar de fora, como Villas Boas, ou de oposição, como o Santos Cruz.
Linha 5: Quais jornalistas vão dar as notinhas dizendo que a ala moderada militar manifestou discordância com a postura de Bolsonaro? Múltipla escolha: Monica Bergamo, Gerson Camarotti, Lauro Jardim, Thais Oyama, Vera Magalhães, Eliane Catanhede, Igor Gielow, Tania Monteiro, etc.
Linha 6 (a mais importante!): Qual pauta relevante de verdade estará passando despercebida no meio de tanto ruído causado pelo telecatch da vez? Aqui já passou boi, passou boiada. Reforma da Previdência, leis antiterroristas, entrega da Embraer, fatiamento da Petrobras, violência contra movimentos no campo e nos territórios indígenas e quilombolas, degradação dos serviços públicos com o corte de gastos, perdas de direitos trabalhistas e por aí vai… Agora mesmo, o pacote de “guerra” do governo salva bancos enquanto o povo sofre com demissões e com dificuldades para acessar a miséria de R$ 600. Mas a captura da pauta não deixa nem chegar a essas questões.
Então está combinado, a cada mês vamos completando até chegar 2022. Quem quiser já pode deixar pronta a tabela para o período 2023-2026.
 
 

Últimas Notícias