Início|Cascudo|O aprendiz de doente

O aprendiz de doente

-

Por IELA em 27 de setembro de 2016

O aprendiz de doente

Foi tiro certeiro, como de costume: “você precisa ler o Pequeno Manual do doente aprendiz do Câmara Cascudo”. Era Gilberto Felisberto Vasconcellos desde a cidade imperial, em nossa pregação telefônica semanal. Giba queria saber da cirurgia que me deixara de muletas e sem autonomia por 60 dias. Ele deu a receita sem rodeio algum, como se fosse médico. Talvez exista – mas eu não conheço – alguém tão antenado na cultura brasileira feito meu amigo de Petrópolis. É lástima que não tenha auditório amplo, especialmente nas universidades e nos sindicatos. 
Câmara Cascudo é santo de devoção pra Felisberto Vasconcellos. Com orgulho comedido Giba recorda com frequência o único encontro com o sábio brasileiro da cultura popular lá em Natal. De fato, é privilégio que pode ser observado neste potente livrinho ainda que o mestre potiguar tenha impedido por anos a publicação por considerá-lo demasiadamente confessional. Uma cronica hospitalar. Proibiu a publicação enquanto respirou. 
De minha parte, como dizem os hispânicos, li o Pequeno Manual de um tirón. Livro bom, barato e difícil de encontrar é na estante virtual, a maior contribuição da tecnologia gringa para o leitor fiel. Compensa fácil a cronica e colonial falta de bibliotecas públicas. Sofremos a interminável morte da memória nacional, segundo Franklin de Oliveira. Agora sou mais um entre milhares de brasileiros em recorrer a sabedoria enciclopédica de Câmara Cascudo diante de qualquer dificuldade mundana.
Carlos Drummond de Andrade advertiu no ano rebelde de 1968 a receita que Giba me apresentou agora, num momento difícil: “O Cascudo aparece, e decide a parada. Todos o respeitam e vão por ele. Não é propriamente uma pessoa, ou antes, é uma pessoa em dois grossos volumes, em forma de dicionário que convém ter sempre à mão, para quando surgir uma dúvida sobre costumes, festas, e artes do nosso povo…” Cascudo é expressão nacional, disse o poeta de Itabira.
O livrinho nasceu após 45 dias de permanência num hospital. Leu e escreveu, suspeito, todos os dias. Eu, comparado ao folclorista, sou menor até nisso: rasas 5 noites. Além da genialidade, ele tinha a vantagem de ter estudado medicina até o quarto ano quando abandonou o bisturi porque queria ser um homem do Brasil. No entanto, não desprezo minha fugaz internação, pois foi tempo suficiente para sacar a rotina hospitalar e reconhecer identidades e contrastes com o relato feito pelo homem que apreciava charutos.
Câmara é cascudo. É também sensível, dialético. Reconhece a questão na coisa simples, na linguagem, no comportamento, no hábito. Não despreza história, conto ou crença popular. Mesmo no fundo do Hospital das Clínicas produziu texto repleto de sacadas úteis e imensa sabedoria. Lia em espanhol, francês e inglês, vi nas referências. Manteve relação com Fernando Ortiz, o grande historiador e sociólogo cubano, também folclorista, mas à moda caribenha. Vê-se o apreço pelos tratados de medicina. É um espanto que os gramscianos brasileiros não imitem o marxista italiano e mergulhem fundo no folklore, via Cascudo. Gramsci escreveu profusamente sobre Pirandelo, Leoni, Antonelli, Martini, Villauri, e tutti cuanti como se pode ler no Il nostro Marx. Os gramscianos dos trópicos, ao contrário, pretendem-se versados na cultura européia.
É tal o colonialismo entre nós que certa vez ouvi na UFSC uma pérola: “Mariátegui é o nosso Gramsci”, como se o peruano necessitasse da ociosa comparação para evidenciar grandeza. Esta atitude colonizada é também traição ao próprio Gramsci. Na verdade, é conduta anti-gramsciana mas cai como luva na escolástica e estranhamento que comanda a maior parte da vida dos letrados festejados e da boçalidade acadêmica. Melhor assim, pois não é necessário sujar as mãos com nossa realidade vital. O Borges de 1925 sacou de imediato o problema, ainda que tenha renegado mais tarde sua original descoberta: “nossa realidade vital é grandiosa e nossa realidade pensada é mendiga”. Avançamos algo, é claro, mas neste momento da vida brasileira somente um projeto cultural revolucionário pode sacudir a piramide que nos amassa; até lá, na cultura, teremos mais diversão do que contribuição fecunda. Além, é claro, de milhares de dissertações e teses.
No Hospital estive imóvel. No último dia, antes de sair, caminhei duas vezes no corredor com aquele andador desajeitado de quatro patas; sentia-me uma girafa, confesso, mas pelo menos eu andava. O intestino e os rins paralisados pela anestesia até o último dia de internação. Deitado, com os olhos para o teto, manhã, tarde e noite. À esquerda, a janela lateral permitia ver o sol das manhãs e as luzes noturnas, por vezes tomado pela fantasia de que lá fora a felicidade comandava a vida da cidade. Todo final de tarde sonhava ingenuamente com a ordem da doutora, “vai… pra casa!”. Ao contrário de Cascudo eu não estava enfermo, unicamente convalescente e com internação limitada. Ainda assim, saí de lá tomando 10 comprimidos diários e outras tantas recomendações na mochila para os primeiros 40 dias. “Não pode isso, nem pensar naquilo e jamais aquele outro”. Não pode dirigir, não pode calçar o sapato e não pode deitar no lado do corte, o direito.
O poeta Ludovico Silva recebeu o recado de um anjo (“nenhuma gota mais Ludo”), enquanto o meu chegou pela boca do enfermeiro chefe: “nos próximos 50 dias nada de álcool Nildo”. Dormir do lado esquerdo somente com travesseiro entre as pernas para não desalinha-las e comprometer a cirurgia. Dormir do lado direito nem em pesadelo. Nas costas, a pele se esfarela, produz escamas. Lá eu mirando novamente o teto, agora em casa. Também deixei dois ou três quilos no quarto no qual enfermeiros seguram o pós operatório com sumo zelo. O primeiro banho ainda no hospital me foi dado por duas enfermeiras como se fosse eu um recém-nascido. É a impotência completa, sentimento que garante imensa naturalidade, nenhum constrangimento. Elas tiram de letra, com habilidade invejável. Já fora das quatro paredes, contraí alergia que rendeu adicionais 3 comprimidos diários pra combate-la por mais 7 dias. O cheiro do corpo muda. A incorrigível desatenção para detalhes práticos me fez suportar a dor por 4 dias de maneira desnecessária, até Júlia ler com atenção a receita que indicava outros 3 comprimidos diários para tornar a vida leve. A primeira pílula em jejum, outras duas após o café da manhã, outra meia hora antes do almoço, outra mais a cada 8 horas… A anestesia, os cochilos inevitáveis para quem permanece na cama, a falta de exercício, tudo contribui para o descontrole do sono até o horário natural voltar.
O Manual de Câmara Cascudo é para doentes mas dedica atenção maior aos médicos e retrata uma época. Os médicos de Cascudo são próximos, quase amigos; ele possui relação íntima com seus doutores e o afeto comanda a relação médico-paciente. Quando deu entrada no Hospital, o professor Luis, já era Câmara Cascudo! O médico e a medicina de Cascudo não mais existem como norma e se assemelham aos dentistas de Keynes, ambos necessariamente modestos. A propósito, o dentista modesto também é agora exceção, tal como a maioria dos médicos. Cascudo os compara a modéstia e sabedoria dos marinheiros, “tanto mais conhecendo o mar, tanto mais receosos de sua surpresa”.
O médico moderno, ao contrário, tem fé desmedida na técnica e na tecnologia. Tampouco teme os mares desconhecidos da vida e da morte que orientam o destino de seus impotentes pacientes. É médico “high-tec”. Carrega certa auto-suficiência, antídoto contra a intimidade com o paciente, certamente repleto de angustia e temores. O “meu” médico é tão conceituado que dispensa relação pessoal. Eu estive com ele duas vezes. A primeira por 20 minutos quando fui conhece-lo para decidir a cirurgia. A segunda, quando apareceu no meu quarto para informar que seu bisturi cortou com precisão. Na palavra sem modéstia, tudo saiu “perfeito”. Adicionais 5 minutos. Vou vê-lo novamente em poucos dias, talvez mais 20 minutos, com sorte. Um abismo quando penso nos doutores amigos do Cascudo. Agora, a escala é industrial e nas condições da medicina capitalista, num país dependente, creio problema sem remissão. A única saída pro sistema de saúde é o cubano, sem dúvida. Ou medicina privada pra poucos.
Cascudo recorre à tipologia mas indica a inspiração kantiana de suas categorias. Existiriam os médicos basálticos, os graníticos e os aluviais. Os três são, no entanto, humanos, próximos do paciente e seus dramas. São amigos e pode-se suspeitar que sofrem algo com as dores alheias. O médico aluvial é filho do século XX e deposita suas esperanças na capacidade da ciência. Os anteriores, embora vizinhos de condição, mantém-se presos a certa experiência da relação entre médico-paciente. Numa época em que o homem pretende rivalizar com a velocidade da luz, o médico é cada dia mais Aluvial, aquele que prepara o caminho mais seguro para os demais, em alguma medida arredios a novidades. Embora possa parecer óbvia, é sacada fina que somente teria sustento sociológico mais tarde com o Homem unidimensional, de Marcuse.
À todo doente aprendiz, Cascudo repete com profundidade: “quem não adoece, não se conhece”. É certo! Nas três parcas páginas dedicadas aos doentes, caem pesados recados a maneira homeopática. A doença é “processo de análise”, “rara oportunidade para o auto-encontro”. O “orgulho é a antítese da doença” e, finalmente, num parágrafo mais ambicioso, de extração psicanalítica, estabelece a sentença: “o sofrimento, a relativa imobilidade da clinóstase, as horas solitárias, o desinteresse pela vida pública, reduzida a uma farfalhante atividade de superfície, valorizam a delicadeza, a curiosidade mental, a jornada sutil, nos meandros da Percepção, emergida dos abismos inconscientes”. 
A ausência de afeto não autoriza, em meu caso, desprezo algum pela maestria do doutor Canella e as advertências sem rodeios da doutora Carla. Ao contrário, as dores que me acompanharam nos últimos dois anos desapareceram e ontem arrisquei passos sem ajuda de instrumento algum. Agora é encarar a lenta fisioterapia. Os enfermeiros foram muitos e as fisioterapeutas outras tantas. Vozes delicadas, atenção suprema. Impossível registrar todos os nomes. Atenciosos, transmitiam calma, pequenas doses de segurança e minimizavam os temores da alma. O quarto, como manda as regras dominantes, era asseado por um haitiano. A sua maneira ele desejou-me sorte com o gesto juvenil dos dedos e sorriso distante. O hospital parece funcionar sem os doutores na normalidade  dos enfermeiros.
Visitas dos camaradas

Além da cicatriz, guardarei a memória de minhas visitas. Elaine e Maicon foram os primeiros em trazer alegria. Juntos chegaram Lauro, Danilo e Capela em suspeita coincidência, como se tivessem combinado uma assembleia na qual eu tinha nítida desvantagem. Nada foi a votos. Mauricio apareceu pra recordar que nada de novo ocorria sob a luta de classes. A irmã Nilva acompanhou pelo telefone e Nilso também. Eliete, mãe de minha adorável Júlia, estendeu mão amiga. Júlia Erêndira foi preciosa. Enfermeira sem diploma, paciência infinita e, por alguns dias, tal como num milagre, deu a devida atenção ao celular, permanecendo atenta aos meus chamados. Na prática, ela reservou as férias para suportar meu humor. Foi dedicada, serena e gentil. Fez os curativos, tratou a ferida. Afago de filha, mas já mulher, dona de seu nariz. Aprendi por enésima vez que ela cresceu. Lição necessária e sempre tardia, determinada pelo tempo que corre lento, quase imperceptível e, obviamente, impiedoso.
Quando em casa, a solidariedade brotou de fonte inesperada. Isaac, o vizinho, vestiu meia, calçou sapato, deu carona e fez compras; chamou por telefone e esteve pendente como se, de fato, fosse membro da família. Sidnei, o pintor de paredes e parceiro flamenguista, ajudou em pequenas necessidades transformadas pelas limitações físicas – e não menor imaginação – em obstáculos tão impossíveis de remover quanto catedrais. Não esquecerei os bolos de laranja de Patrícia e Lauro. Depois chamei Beatriz, quem foi minha motorista, logo promovida à condição de secretária executiva com plenos poderes. Jonathas, o arquiteto, comandava a reforma da casa, também vestiu e tirou meia. Preta manteve paciência infinita na luta contra o pó que não deu trégua até o ruído das pequenas máquinas lixadeiras silenciarem por completo. Fábio Lopes foi o camarada de sempre e me concedeu pousada por uma semana, quando era impossível viver sob os escombros da casa em reforma. Toda manhã café e conversa fiada. Fiada na amizade certa e não poucas divergências políticas que se acumulam – ambas – com os anos. Os dias passavam na lenta medida da cicatrização. Ela, a cicatriz, é um risco no corpo e um fio na memória mas, como todo sofrimento passado, é agora mera crônica, transforma-dor. Recordo Cascudo: “quem não adoece, não se conhece”. No outro lado do rio, observo com humildade aqueles dias. Caminhando sem limitações aparentes, estou “pronto para outra”, mas prefiro não. 
 

Últimas Notícias