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Duas ou quatro observações sobre o memorial do professor Nildo Ouriques

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Por IELA em 06 de setembro de 2019

Duas ou quatro observações sobre o memorial do professor Nildo Ouriques

Texto de Gilberto Felisberto Vasconcelos, sobre o memorial do professor Nildo Ouriques, apresentado para a defesa do cargo de professor titular.  Gilberto fez parte da banca.
Na maioria das vezes a narrativa em primeira pessoa, nos textos de um economista, é um tédio a leitura ou senão indício de trapaça existencial, quando não juntas as duas coisas. Permitam-me aqui afirmar, em alto e bom som, que estamos com Nildo Ouriques perante uma exceção, pois ele é o único economista no Brasil que não escreve mal. Acrescente-se que não considera a linguagem uma vestimenta da ideia, e sim a ideia como expressão linguística, à semelhança daquilo que escreveu o poeta Ludovico Silva sobre o estilo de Karl Marx comparando a Beethoven. 
A guinada estilística, digamos assim, é observável no momento em que escreveu no hospital o seu manual de doente aprendiz. Eis aí Nildo Ouriques a construir seu estilo, o que não é nada fácil. Sabemos que isso pressupõe a existência do homem; afinal, o estilo é o homem. Vejo que se delineia um estilo nesse memorial que esperemos não seja o último degrau no pensamento e na carreira desse notável professor, que ama como ninguém a universidade. 
E que estilo é esse? Trata-se, a meu juízo, de um estilo apodíctico, sem papas na língua, direto, peremptório, resoluto, baseado no verbo de ligação, é não é, e por aí vai evocando as ideias, as pessoas, os acontecimentos.  Não é descabido considerar que esse estilo seja expressão da luta de classes, conceito onipresente em sua prosa, que é avessa aos paninhos quente conchavados nas trapaças conciliativas da classe dominante.
Reparem quão freqüentes são revelados no memorial, as rupturas, a mudanças de caminho, as pelejas dentro e fora da universidade.
Todavia injusto tê-lo como um brigão, um criador de caso; melhor e mais justo é analisá-lo sob o prisma militante de quem ficou afeiçoado, desde cedo, ao tema da biblioteca e da cultura.  Somos informados da origem proletária de sua família: pai cobrador de ônibus; mãe operária da indústria alimentícia, depois de trabalhar em pequenos frigoríficos. Vários historiadores gaúchos apontaram a contradição entre os produtores de gados e os donos dos frigoríficos estrangeiros na origem do nacionalismo trabalhista. Não posso deixar de mencionar que nesse memorial Nildo Ouriques, interessado em juntar marxismo com nacionalismo, tece elogios ao papel revolucionário de Leonel Brizola, na razão inversa sobre a atuação de Lula na história no Brasil no tocante ao sindicato e à classe operária. 
O relevo dado ao intelectual, que está entre a revolução e a prostituição, é uma constância em quem quer transformar o mundo, como figura em uma das teses sobre Feuerbach de Karl Marx e que serve de epígrafe ao memorial. No México Nildo Ouriques escreveu  dissertação de mestrado orientada pelo equatoriano Agustín Cueva, sociólogo que não por acaso estudou o avacalhamento pós-moderno da intelectualidade na América Latina. 
Reputo um lance bastante afortunado ter Nildo Ouriques ingressado como professor na Universidade Federal de Santa Catarina aos 37 anos, depois de algumas andanças pela América Latina, trabalhando como colaborador de alguns jornais estrangeiros e tendo trabalhado em rádio para descolar a sobrevivência. 
Há em sua personalidade um traço de gentileza com seus amigos, sem que nos esqueçamos os amigos próximos que tem sido generosos para com ele, como Elaine Tavares e Waldir Rampinelli. 
Eu confesso, inteirando-me de sua estada no México privando com intelectuais de alto coturno, que senti uma nesga de inveja por ter ele convivido com tanta gente boa, o que contribuiu para torná-lo um exímio conhecedor da América Latina, não só entre sua geração como de gerações vindouras. Seguramente foi isso que o diferenciou no meio dos economistas, colocando-o no mesmo patamar do saudoso Teotônio dos Santos, o grande amigo de Rui Mauro Marini, o totem marxista cultuado por Nildo Ouriques. Este chegou a ganhar uma áspera crítica de Rui Mauro Marini por ter escrito um artigo ruim. Nildo Ouriques conta isso não em clima de humor e gozação, antes sublinha a sincera relação que deve nortear os intelectuais, sobretudo os mestres e os discípulos. A propósito dos muitos intelectuais que influenciaram sua formação bolivariana, vale aqui salientar que essa conversa interferiu no seu jeito de escrever sobre economia e ciências sociais, o que é raríssimo de acontecer entre os seus pares que, na maioria das vezes, são moucos e avessos às coisas que o povo diz. Nildo Ouriques escreve não para os economistas, ele escreve para os leitores não especializados, daí comprazer-se em citar Ortega y Gasset para quem o especialista é um bárbaro vertical. 
A oralidade que medra na escrita de Nildo Ouriques leva-me a conjecturar que a economia, ciência da riqueza, não se acha na mentalidade popular, conforme mostrou Luís da Câmara Cascudo no tocante ao desdém do homem do povo pelo armazenamento de víveres e a negligência pelo dia de amanhã. O amanhã é outro dia, o amanhã a Deus pertence, atitude que está tão arraigada na psicologia dos trópicos, segundo o médico Silva Melo. 
O curioso é que a diáspora latino-americana de Nildo Ouriques, que o fez desprovincianizar-se não só de Santa Catarina como dos vários brasis, não foi ensejada pelo golpe de 64 como acontecera com alguns intelectuais trabalhistas e marxistas, a exemplo de Paulo Schilling, Edmundo Moniz, Álvaro Vieira Pinto e Darcy Ribeiro, sem que se deixe de mencionar o caudilho Leonel Brizola. 
Releva dizer que Nildo Ouriques é um intelectual aves-rara cada vez mais nas universidades de perfil xopicenter, porque ele leva a sério a função pública do intelectual que, como dizia Jean Paul Sartre, é aquele que mete o bedelho em todos os assuntos da tribo. Se não fosse exorbitar-me na analogia histórica, diria que Nildo Ouriques é um remanescente da POLOP contra o pop que venceu, o Brasil pop vencedor como repetia o sociólogo FHC em suas campanhas eleitorais de triste memória. 
O memorial é um gênero (lembra o diplomata Aires em Machado de Assis) que pega o passado e tende a imobilizar o presente, mas no caso de Nildo Ouriques há sempre um decurso que está permanentemente em andamento – um work in progress – tal qual a pesquisa anunciada por ele sobre o rentismo que integra o rentismo videofinanceiro nas áreas dependentes.

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